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07/05/18 às 11:18

Realidade virtual leva índios brasileiros a Londres

LONDRES - Para chegar à aldeia Ipatse é preciso pegar um avião até Brasília, viajar mais 18 horas de ônibus até Canarana (Mato Grosso), e depois enfrentar oito horas de carro, sendo que um trecho talvez tenha que ser feito de barco. Só então o viajante pisará na terra dos kuikuros, uma das 16 etnias do Alto Xingu. A distância entre esse ponto do Brasil e Londres é incalculável, mas essa noção de espaço é questionada pela instalação “Xingu Ensemble”, do artista Clelio de Paula, na qual os índios contam suas histórias através de realidade virtual. Assim, é como se eles pudessem estar em qualquer lugar. No domingo, estarão no museu Tate Modern, um dos principais centros de arte contemporânea do mundo.

A instalação é a expressão artística do Projeto Xingu, financiado por instituições de pesquisa britânicas para preservação da cultura indígena. Os kuikuros já têm uma produção audiovisual reconhecida, representada pelo cineasta Takumã Kuikuro. A convite dele, nove artistas se instalaram na aldeia no ano passado, durante 20 dias. Armado de drones, scanners 3D e câmeras 360 graus, o time registrou a vida da tribo, produzindo memória com o objetivo de proteger um patrimônio cultural em risco. A imersão, que se repetirá este ano, trouxe da floresta um material inédito. Nas mãos de Clelio, imagens e sons se transformaram num espetáculo de magia digital. É como voar pela mata com os kuikuros, sob um céu de estrelas. Sem sair de Londres, ou de qualquer outro lugar.

— A holografia tridimensional transporta a aldeia para que ela possa narrar sua própria história — explica Clelio, que se diz um “obcecado por memória e registro”.
 
Tendo como base a engenharia eletrônica de computação, o fluminense de Xerém se define como um criador de arte através de códigos. No Xingu, onde esteve acompanhado por nomes como Gringo Cardia e Batman Zavareze, investigou lendas e hábitos dos índios, e gravou imagens usando escaneamento de pessoas reais para montar um diorama futurístico, no qual elementos mitológicos e cotidianos se confundem. O convite para que o artista mostrasse o trabalho em Londres partiu da Queen Mary University e do People’s Palace Projects, que promove projetos artísticos em diferentes comunidades.

Yamalui Kuikuro, membro da tribo e pesquisador indígena, acompanha Clelio na visita. É sua voz que tem destaque na instalação, contando uma lenda na língua karib. A participação reflete a preocupação em garantir o protagonismo dos kuikuros, os donos da história.

— Quero que a realidade do meu povo seja conhecida. Sou parte dessa narrativa e tenho muito orgulho dela — disse Yamalui, em sua primeira viagem ao exterior.
 
A instalação integra uma mostra do Tate Modern que discute a preservação de culturas em situações de risco e ruptura. Para Clelio, as tecnologias digitais têm a capacidade de eternizar elementos que acabariam se perdendo, preservando narrativas imersivas que não se encaixam num quadro. O artista relembra o momento em que se sentiu livre na aldeia, sem ser “mais um homem branco” invadindo uma terra que não é dele:

— Passei oito horas num barco pescando com um pai e um filho. No barco, entendi que eles não eram figuras mitológicas, mas pessoas muito mais parecidas comigo do que eu imaginava. Entendi seu humor, e me vi muito próximo deles. Naquele dia, fiquei livre para ser seu amigo e trabalhar com os kuikuros.

O acervo virtual vai crescer, reforçado por uma parceria que envolve o Horniman Museum (museu de etnografia de Londres), a Factum Foundation e a Associação Indígena Kuikuro. Novas imagens resultarão em outra experiência interativa, em realidade aumentada, que voltará a quebrar as barreiras físicas de um museu, desta vez numa exposição no Horniman, prevista para o fim do ano.
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