A configuração das famílias mudou ao longo do tempo e o direito vem buscando reconhecer e amparar juridicamente essas mudanças. Antigamente, o vínculo parental admitido era apenas o biológico. A sociedade se modificou e o vínculo socioafetivo também foi reconhecido como forma de parentesco civil. Em 2021, o Superior Tribunal Federal (STF) entendeu que não há hierarquia entre a paternidade/maternidade socioafetiva e a biológica, abrindo espaço para a multiparentalidade.
E esse foi o entendimento da juíza de Direito da 2ª Vara Especializada de Família e Sucessões da Comarca de Várzea Grande, Gisele Alves Silva, que julgou procedente um pedido para reconhecimento voluntário de paternidade socioafetiva. A decisão manteve o nome do pai biológico no registro civil do menor, de oito anos e com isso, a documentação contará com os nomes dos dois pais, tendo a multiparentalidade.
Esse termo é utilizado para o reconhecimento jurídico da coexistência de mais de um vínculo materno ou paterno em relação ao mesmo indivíduo. Ou seja, o reconhecimento estatal de que uma pessoa possui “dois pais” ou “duas mães”, permitindo que essa situação seja formalizada perante o registro civil, fazendo constar em seus documentos essa dupla filiação, materna ou paterna. Esse reconhecimento jurídico, por sua vez, traz todas as implicações inerentes à filiação, com deveres e direitos recíprocos, sem qualquer hierarquia entre os pais ou mães.
A ação foi interposta pelo padrasto, que vive em união estável com a genitora do menor (também requerente desta ação) desde o oitavo mês de gestação do menino, que nasceu em 2016, fruto de um relacionamento anterior da mãe com o pai biológico de origem americana. O requerente sustentou que, desde o nascimento da criança, ele assumiu a posição de pai, tanto afetiva como financeira.
“A paternidade socioafetiva é muito comum nos casos de famílias mosaicos ou reconstituídas, onde o padrasto ou madrasta, por serem considerados pais dos seus enteados, buscam o reconhecimento jurídico. Existe ampla aceitação doutrinária e jurisprudencial da paternidade e maternidade socioafetiva, contemplando os princípios da afetividade e da dignidade da pessoa humana como fundamento da filiação civil. E o estudo psicossocial realizado com a família constou que trata-se de um lar afetuoso e que convivem pacificamente, ofertam todos os cuidados necessários ao bem-estar da criança, e que desde a vida intrauterina, o requerente já vinha desempenhando a função paterna, na ausência do pai biológico”, enfatizou a magistrada Gisele.
O pedido de reconhecimento da paternidade socioafetivo do requerente também é de interesse da mãe do menor, que gostaria de ver o seu companheiro, pai biológico do segundo filho dela, também ser reconhecido como o segundo pai do seu primeiro filho. Durante a tramitação do processo, o pai biológico foi incluído no polo passivo da ação para ser citado, e sua resposta foi negativa, alegando não concordar com a inclusão do nome do requerente no registro de nascimento do menor.
“Embora o genitor discorde do pedido, tal fato não impede o reconhecimento da paternidade suscitada, diante a desnecessidade de consentimento do pai biológico, até porque a pretensão não inclui a retirado do nome do pai biológico, muito menos a perda ou suspensão do poder familiar”, explica a juíza de Direito.
Por fim, a magistrada ressaltou que a dupla paternidade, por si só, não trará prejuízos à criança, que demonstrou gostar do fato de ter dois pais e considerá-los. “O infante manifestou ter orgulho em dizer ter dois pais, e demonstrou gostar de ambos. O menor tem claro que seu pai biológico reside em outro país e a convivência não é frequente, mas não foi percebido nenhum prejuízo nesta relação. Foi observado existir vínculo afetivo tanto com o pai biológico quanto com o pai socioafetivo, porém com este parece ser mais arraigado, por conta da convivência diária”, finaliza.