Notícias / Religião

11/08/21 às 08:53 / Atualizada: 11/08/21 às 09:06

Celebrar é preciso: Pedro Casaldáliga e o missionário jesuíta

Há um ano da morte do bispo do Araguaia, faz-se memória dos mártires da caminhada, como de padre Burnier

Gabriel Vilardi, SJ*

AguaBoaNews via domtotal.com

Imprimir Enviar para um amigo
Celebrar é preciso: Pedro Casaldáliga e o missionário jesuíta

Padre Burnier e bispo Pedro Casaldáliga

Foto: Reprodução - JM Concepción/casaldaliga-causas.org

Citando o poeta Vinícius de Moraes, o papa Francisco recorda que "a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro" (Fratelli Tutti). E duas fecundas vidas missionárias se encontraram no interior da Amazônia e fizeram história. Dois religiosos apaixonados pelo Evangelho de Jesus Cristo, o claretiano Pedro Casaldáliga e o jesuíta João Bosco Burnier.

Nesse domingo, 8 de agosto, completou-se um ano da Páscoa do Profeta do Araguaia. Como os primeiros signatários do Pacto das Catacumbas, abriu mão dos títulos e de todos os sinais de riqueza e poder. Chamavam-no de bispo Pedro ou simplesmente, Pedro. No lugar do anel e da mitra episcopais, um anel de tucum e um chapéu de palha. Ao invés do báculo, um remo.

O missionário espanhol colocou-se a serviço do povo. Povo sofrido, espoliado e explorado. Afinal, como afirmou em plena ditadura, "a injustiça tem um nome nesta terra: o latifúndio". E, sem medo de apontar caminhos e incomodar os detentores do poder, provocou: "o único nome certo do desenvolvimento aqui é a reforma agrária".

Essas denúncias corajosas vieram à luz com a publicação de uma carta pastoral, quando da ordenação episcopal de Casaldáliga, intitulada Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social (1971). Um marco que vai influenciar o modo de ser Igreja na Amazônia. Visionário, este documento antecipa, quase cinquenta anos antes, o que depois dará origem à Rede Eclesial Pan-Amazônica (Repam), ao Sínodo para a Amazônia (2019) e à Conferência Eclesial da Amazônia (Ceama).

O bispo deixou-se interpelar pelas desigualdades gritantes que oprimiam impiedosamente camponeses e povos indígenas. E o pastor se fez um com seu rebanho. Incansável, assumiu as causas do povo, as causas do Reino de Deus. Levantou sua voz forte e com sua reconhecida poesia fez-se ouvir em todo o mundo. Comprometido com os empobrecidos até o fim, encantou gerações de cristãos e militantes sociais de toda América Latina.

Dentre os muitos que atravessaram as águas da Amazônia e cruzaram o caminho do bispo-poeta, a figura de João Bosco Penido Burnier foi significativa. Em 2021 celebra-se os 45 anos do martírio do padre jesuíta que se tornou, também, símbolo de resistência às injustiças. Oriundo de Juiz de Fora-MG, nutria o desejo de ser missionário no Japão. Depois de quase trinta anos de vida religiosa, tendo ocupado importantes funções dentro da Companhia de Jesus, pede para ser enviado a uma missão de fronteira.

Em 1966 é destinado para a Missão Anchieta, na Prelazia de Diamantino-MT. Nos primeiros anos, padre Burnier percebeu que precisava de uma formação mais apropriada. Mesmo com mais de cinquenta anos, busca atualizar sua teologia e antropologia. Com o tempo, os indígenas conquistam o coração do austero jesuíta. E com afeto, o povo Bakairi dá-lhe o nome de Sapinágue.
Nas periferias geográficas e existenciais, o inesperado irrompe. O despojamento e a generosidade são imprescindíveis. Apenas ao sair do "próprio amor, querer e interesse" (Exercícios Espirituais n. 189) se pode encontrar desinteressadamente com o outro. Em uma carta à sua irmã, em 24 de outubro de 1973, Burnier professa com paixão seu compromisso com a causa indígena:

"Aqui vai meu rabisco para dizer que a excursão de setembro saiu toda muito bem, só que com um programa totalmente diverso daquele que eu tinha anunciado. Os índios é que mandam na minha vida e senti imensamente como de verdade a minha vida está a serviço deles. Andei de Toyota uns 2.300 Km totalmente a serviço dos meus Bakairi".

Desde fevereiro de 1976 passa a ocupar a função de coordenador regional do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), no nordeste do estado. No começo de outubro daquele ano, o padre jesuíta vai até a Prelazia de São Félix participar de um Encontro Indigenista. Pedro Casaldáliga testemunhou seu encantamento na convivência com o povo Tapirapé e o quanto padre Burnier estava "cada dia mais comprometido com a causa indígena, cada dia mais solidário com a missão do Cimi".

Concluído o encontro, ambos foram até a cidade de Ribeirão Bonito (hoje, Ribeirão Cascalheira) celebrar a festa de Nossa Senhora Aparecida. Ao chegarem perceberam o clima de terror que imperava no pequeno vilarejo. O lugar estava tomado por policiais militares em reação a morte do cabo Félix, conhecido na região pelos seus crimes e arbitrariedades. Ainda assim, Casaldáliga e Burnier se juntaram ao povo que festejava sua padroeira.

Por volta das 18 horas, ouviram os gritos de duas mulheres presas injustamente pela polícia. Eram Margarida e Santana e estavam sendo submetidas a torturas horrendas. O bispo resolveu intervir naquela situação e o padre João Bosco se ofereceu para acompanha-lo.

Apresentaram-se na delegacia e tiveram um tenso diálogo, com insultos e ameaças por parte dos policiais. Indignado, o jesuíta disse que os denunciaria às autoridades superiores pelas ilegalidades praticadas. Nesse instante, o soldado Ezy Ramalho Feitosa deu-lhe uma bofetada, seguida de um golpe de revólver no rosto e do tiro na cabeça.

Após os primeiros socorros, conseguiram leva-lo de avião para Goiânia. Mas, era tarde demais, padre Burnier fizera a sua Páscoa no dia 12 de outubro de 1976. Convicto de que o serviço da fé implica a inegociável promoção da justiça, o jesuíta não retrocedeu diante da opressão e colocou-se como companheiro de Jesus ao lado dos violentados.

No lugar da delegacia, destruída pelo povo indignado, Pedro Casaldáliga levantou o Santuário dos Mártires da Caminhada. Trata-se do único santuário do mundo que celebra os que caíram em defesa da justiça e do direito. E desde 1986 acontece a cada cinco anos a Romaria dos Mártires da Caminhada. Sem dúvida, a memória dos mártires é perigosa. Porque, como ensinava Dom Hélder Câmara, ela "não deixa cair a profecia".

Celebrar é preciso! Mesmo em meio a tanta dor, diante das mortes provocadas pela pandemia do coronavírus. Celebrar é resistir. Resistir à desesperança crescente de cada dia, em que os tempos parecem se tornarem mais sombrios. Mergulhada na insensibilidade com os Direitos Humanos, a democracia brasileira se enfraquece.

Mas, mesmo naquele dramático momento, o bispo do Araguaia não capitulou. Suas palavras, na missa de sepultamento do padre Burnier, são consoladoras:

"Minha última palavra, irmão, seja esta: somos os filhos da Luz, somos os filhos da Esperança. Para nós a morte já foi vencida, faz muitos séculos. Não há mais morte; há só paixão, há só passagem, há apenas Páscoa. A morte para nós é vida e ressureição, porque a fé para nós tem um nome: Jesus. A fé para nós tem um sobrenome: Ressuscitado. Jesus Ressuscitado é a nossa fé. Esta é a fé do padre João Bosco. Por esta fé vamos morrer e por esta fé vamos ressuscitar".

Que brote a memória agradecida dos mártires e profetas da caminhada! Tantos cristãos e cristãs que tombaram pela fidelidade ao Reino de Deus. Falem por si mesmos os intensos 92 anos de um testemunho comprometido e profético. Afinal, Pedro Casaldáliga viveu uma vida martirizada, farol para os homens e mulheres de boa vontade. No coração do seu povo, Pedro sempre foi santo.

*O autor Gabriel Vilardi é Jesuíta; bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP - São Paulo/SP) e graduando em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE - Belo Horizonte/MG). E-mail: gabrielvilardi@hotmail.com

comentar  Nenhum comentário

AVISO: Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião do Agua Boa News. É vetada a inserção de comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros. O site Agua Boa News poderá retirar, sem prévia notificação, comentários postados que não respeitem os critérios impostos neste aviso ou que estejam fora do tema da matéria comentada.

 
 
 
Sitevip Internet