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12/12/15 às 14:11

Coletoras indígenas participam do I intercâmbio Xavante-Ikpeng

Rafael Govari, do ISA

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Coletoras indígenas participam do I intercâmbio Xavante-Ikpeng

Foto: Marco Túlio – OPAN

Coletoras de sementes florestais e indígenas das aldeias Moygu (povo Ikpeng) e Marãiwatsédé (povo Auwẽ ou Xavante) participaram no mês de outubro do primeiro intercâmbio Auwẽ-Ikpeng, no Parque Indígena do Xingu (PIX), entre os dias 09 e 14. Uma das atividades realizada foi a troca de experiências indígenas sobre planejamento anual da coleta pelas coletoras Xavante e Ikpeng. Também contou com visita às áreas de coleta da aldeia Moygu, feira de troca de sementes e artefatos, além de demonstrações culturais Ikpeng. Essa atividade visou promover a troca de experiências entre os dois grupos que se caracterizam principalmente pelo protagonismo das mulheres na coleta de sementes. Participaram das atividades técnicos do ISA (Instituto Socioambiental) e da OPAN (Operação Amazônia Nativa)

Toda viagem que envolve longos trechos de estrada de chão e rios, em locais de difícil acesso, por si só é uma aventura. O deslocamento dos indígenas Xavante da TI Marãiwatsédé até a Aldeia Moygu (PIX), não foi diferente. O atraso de um dia na chegada, por conta de problemas mecânicos no transporte, por sua vez foi recompensado pelo visual da exuberante natureza do Parque Indígena do Xingu. O cenário percorrido ao longo dos rios Suiá e Xingu é maravilhoso, povoado de aldeias Kisêdjê e Kaiabi em suas margens.

A programação iniciou com as apresentações do intercâmbio. As mulheres coletoras Ikpeng se autodenominam Yarang (que quer dizer saúva na língua Ikpeng, do tronco Carib, inspirado no movimento de recolher sementes do chão da floresta e levá-las para limpar em casa). Já as coletoras Xavante são conhecidas como Pi’õ romnhama ubumrõi’wa. Para quebrar o gelo e aproximar os participantes, as mulheres Pi’õ entregaram camisetas do grupo Xavante, confeccionadas pela OPAN, para as lideranças do grupo Yarang.

Nesse primeiro dia, ficaram evidenciadas as histórias de desterritorialização Xavante e Ikpeng. Os Xavante só reconquistaram a TI Marãiwatsédé em 2013. Já os Ikpeng ainda lutam por seu território original, a TI Jatobá, de onde foram tirados na década de 1960 para o PIX pelos irmãos Villas-Boas. Com auxílio do facilitador Domingos Tsere’õmõrãte, foi realizada uma explanação sobre o histórico da luta Xavante pela terra de Marãiwatsédé. A luta de Marãiwatsédé vem, portanto, servir como grande inspiração e exemplo de conquista para os Ikpeng, que ainda não conseguiram a demarcação de sua área tradicional.

Sazonalidade e calendários culturais
Os Ikpeng expuseram suas formas de ler e interpretar os sinais da natureza para realização de suas atividades. Por exemplo, a floração do murici é indicativa da época certa para a semeadura/plantio. Os Xavante expuseram seu calendário cultural próprio, com base na sistematização facilitada pela OPAN para o Plano de Gestão, no qual o ano é dividido em quatro estações (começo das chuvas – utsu; auge das chuvas – a’ẽta; começo da seca – tsa’u’u; e auge da seca – robró’ó).

Ao final das explicações culturais sobre o tema e as formas de se relacionar com os tempos de cada povo, foi discutida a mudança dos climas e como os indígenas enxergam isso. “Os Ikpeng demonstraram grande desenvoltura para tratar a questão, apresentando exemplos práticos de como isso já vem, de fato, ocorrendo no território do Xingu. O facilitador Xavante Domingos apresentou grande consciência dos efeitos globais da devastação ambiental e da industrialização, fazendo um discurso sobre como esses efeitos perniciosos das mudanças climáticas eram culpa dos não índios, mas que mesmo assim os indígenas estão sendo muito prejudicados”, contou Marco Túlio, indigenista da OPAN.

Trocas entre Ikpeng e Xavante
Os Xavante foram preparados para a realização das trocas (Uluki – como é conhecido no Xingu) e levaram muitas peças de artesanato: três arcos e flechas, bordunas, muitos aba’mere e tsi’ono (cofos tradicionais) e até uma tenhamre (esteira Xavante). Além disso, levaram algumas garrafas pet de semente milho Xavante (nodzö), as quais os parentes Ikpeng apreciaram muito, visto que o milho crioulo está em risco em sua aldeia por conta da escassez de terras. “Os Ikpeng, bastante acostumados com esse tipo de troca, estavam contentes com a atividade e ficaram felizes em levar os itens Xavante para casa, oferecendo, em troca, esteirinhas xinguanas e muitos colares e outros materiais em miçanga”, disse Marco Túlio.

Dança até raiar o dia
Findado o Uluki, os Xavante convidaram a todos para fazer uma dança tradicional em roda no centro da aldeia, quando puderam mostrar um pouquinho de sua cultura. Logo após, todos começaram a se preparar para a celebração que ocorreria mais tarde. As mulheres Ikpeng se pintaram e os homens Ikpeng se enfeitaram com os cocares e adornos, pendurados previamente na casa dos homens para sinalizar a realização da festa naquele dia, que faz parte integrante do ciclo ritualístico chamado Moyngo, que envolve a tatuagem do rosto dos jovens guerreiros. Os padrinhos dos meninos que irão receber a tatuagem puxaram a fila de dança, que começou a desfilar no fim da tarde, proferindo cantos, acompanhados de flautas e chocalhos. Eles saíam da “casa de cultura”, em frente à casa dos homens. Em uma prova considerável de resistência física, o movimento incessante prolongou-se noite e madrugada à dentro, não se interrompendo nem mesmo quando da queda de um temporal, apenas terminando com o raiar do outro dia.

Visita às áreas de coleta
Na manhã seguinte, os indígenas visitaram as áreas de coleta, contando com um trator para auxiliar no deslocamento da maioria das pessoas. “As coletoras Ikpeng estavam bastante animadas e desejosas de mostrar para o grupo Xavante suas espécies manejadas e os locais onde elas se encontram. Contudo, sua hospitalidade e espontaneidade logo se contrastaram com a inibição e timidez típica das pi’õ quando estão em público”, descreve Marco Túlio.

Como as coletoras se organizam
As Yarang explicaram como dividem os papeis e tarefas entre os vários representantes (coordenadores, coletoras, lideranças femininas, elo), como preparam a lista potencial do grupo, a organização das coletoras para planejar as atividades, a entrega das sementes, dividindo-a por coletora/família, como estão lidando com a gestão da nova casa de sementes (construída pelo ISA em parceria com a Associação Indígena Moygu Comunidade Ikpeng, com apoio financeiro do Fundo Amazônia), entre outras questões relacionadas ao trabalho de autogestão do grupo e de relacionamento com a central administrativa da Rede.

O grupo Xavante explicou sua organização através de paralelos com a estrutura Ikpeng. Por exemplo: onde no Xingu se tem como elo um técnico do ISA, em Marãiwatsédé essa função é exercida pela OPAN. O papel feito pelo que os Ikpeng chamam de “Coordenadores” do grupo (Oreme e Dinei), se assemelha em muito ao que é realizado pelos “Facilitadores” da OPAN (Domingos e Augusta).

Pesos e Medidas
No último dia, as mulheres Yarang resgataram a memória de um trabalho sobre pesagem e matemática tradicional realizado no Xingu com apoio dos ISA, em 2011. Magaro, liderança das Yarang, expôs em sua língua materna como os Ikpeng conceituavam volume e quantidade de sementes. Por exemplo, um balaio pequeno cheio de sementes até a metade ou menos recebe um dado nome/valor, enquanto o balaio completamente cheio de sementes recebe outro nome. “Os Xavante falaram pouco durante esse momento pelo fato da difícil compreensão e um fator linguístico colaborou para isso: em língua Xavante, aplicam-se os mesmos termos para “pesado” e “difícil” (pire di), e “leve” e “fácil” (wapure di). Assim, na língua Xavante as sementes pesadas seriam mais difíceis e, logo, deveriam ser mais bem pagas. Na realidade, por serem vendidas por kg, as sementes mais leves tornam-se mais difíceis pra juntar a quantidade demandada”, falou Marco Túlio.

Queimadas
No período da tarde, foi promovida uma discussão sobre o fogo, uma constante realidade nas duas terras indígenas. Os Ikpeng falaram sobre as queimadas do PIX e como está se alterando o regime de queima dentro do Xingu. Também apresentaram a forma tradicional Ikpeng de queima para preparo das roças de coivara que está intimamente relacionada com os sinais da natureza para acompanhar as estações do ano que os indígenas dominam há incontáveis gerações. As queimadas que os indígenas tradicionalmente manejam como ferramenta importante para diversas atividades, além da roça de coivara – e nunca trouxeram problemas -, atualmente estão mais complexas. Esta situação afeta a disponibilidade dos recursos naturais importantes para os indígenas, como por exemplo, matrizes de sementes florestais e áreas agricultáveis.

“Com as mudanças climáticas que provocam a mudança no comportamento do fogo, os Xinguanos estão experimentando iniciativas que incidem diretamente no dia-a-dia das comunidades. Desde 2006, o ISA apoia comunidades do PIX no manejo do fogo para contribuir na adaptação dos povos do Xingu a uma nova condição ambiental”, explicou o técnico do ISA, Dannyel Sá.

Entre os Xavante, quem falou foi Marcelo (traduzido por Domingos), tradicionalmente tido com wahub tede’wa (dono das estações – ciência Xavante que é passada de pais para filhos do clã poredza’ono). Marcelo e Domingos explicaram a importância do fogo para a cultura Xavante. Marcelo relatou as técnicas de caçada com fogo e de queima para a roça. Em seu processo tradutório, Domingos acrescentou às falas de Marcelo, vários apontamentos próprios, trazendo novamente à tona a questão das mudanças climáticas, regime de chuva e como isso altera a queima.

Resultados
Na visão do indigenista Marco Túlio, o intercâmbio foi bem sucedido em todos os seus objetivos. “Um caráter extremamente positivo que primeiro se destaca foi mesmo a riqueza das trocas interculturais, onde anfitriões e hóspedes puderam ali expor suas tradições de maneira respeitosa e pacífica. Posto o atrito entre Xavantes e Xinguanos que remonta há várias décadas – muito embora os momentos de contatos entre eles sejam bem fugazes -, considera-se que a atividade foi bem-sucedida no objetivo de quebra de paradigmas e preconceitos entre diferentes grupos indígenas. Muitas similitudes emergem das posturas guerreiras e autodeterminadas dos Xavante e Ikpeng e sugere que houve uma identificação mútua entre os povos, especialmente em seus históricos de lutas e processos territoriais”, relatou Marco Túlio.

Para o técnico Dannyel Sá, o intercâmbio foi muito importante para as coletoras do Movimento das Mulheres Yarang. “O grupo é um dos mais antigos e consolidados, tanto do Parque Indígena do Xingu, quanto da Rede como um todo. No entanto, apesar disso, as coletoras conhecem pouco dos demais grupos da Rede porque elas têm pouca disponibilidade de participar dos Encontros Gerais, embora se reúnam anualmente com os grupos do Parque Indígena do Xingu. Este contato com um grupo não xinguano foi muito importante para aproximar as Yarang do contexto mais amplo da Rede que elas tanto ouvem falar e veem em mapas e vídeos. Além disso, a troca de experiências com outras coletoras é muito vantajosa. Neste caso, a caminhada das Ikpeng pode ser muito inspiradora para as coletoras de Marãiwatsédé, que estão há menos tempo na Rede, ao mesmo tempo que contrastar a organização das Pi’õ com a própria dinâmica de trabalho, trouxe revelações importantes para o desenvolvimento do Movimento das Mulheres Yarang. Por fim, os Ikpeng estão se especializando na recepção de outros parentes em suas aldeias. Duas semanas antes do intercâmbio acontecer, a aldeia Moygu recebeu cerca de 500 visitantes (representantes das 16 etnias do PIX, outros cinco povos de Terras Indígenas da Amazônia, e não indígenas). Acolher parentes indígenas em sua aldeia é motivo de muito orgulho para os Ikpeng”, disse Dannyel.
  • Coletoras indígenas participam do I intercâmbio Xavante-Ikpeng
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