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28/07/19 às 18:54 / Atualizada: 28/07/19 às 19:10

As trágicas histórias dos brasileiros que morrem na fronteira do México com os EUA

Luiza Franco Da BBC News Brasil em São Paulo

AguaBoaNews

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As trágicas histórias dos brasileiros que morrem na fronteira do México com os EUA

O que motiva brasileiros a deixar o país e encarar os riscos da travessia e o desconhecido rumo a ilegalidade nos EUA?

Foto: REUTERS

Toca o telefone de uma empresa de serviços funerários sediada no estado de Massachussetts, nos Estados Unidos. Uma voz masculina jovem atende. É Weverton Tiago Silva Prado, 33. As ligações para a empresa caem direto no seu celular pessoal. A empresa ajuda a fazer a repatriação de corpos de brasileiros que morrem no exterior. Tiago é um dos sócios e acompanha de perto os casos mais sensíveis
 
Nessa ligação, ele relata à BBC News Brasil os casos com que teve de lidar ao longo de sua carreira, misturados aos detalhes de sua própria jornada atípica, de imigrante ilegal a empresário. “Tinha tudo para ser mais um no sistema carcerário dos Estados Unidos, como vários dos meus amigos de escola”, diz ele. Mas se tornou cidadão americano, estudou, ascendeu socialmente. Tiago se comove ao lembrar de algumas famílias que atendeu, especialmente aquelas cujos parentes morreram tentando atravessar de forma clandestina a fronteira do México com os Estados Unidos.

Só em 2018, 283 pessoas de diversas nacionalidades morreram nessa travessia – e esse não foi o pior ano. No início de julho de 2019, uma menina identificada pela família como brasileira desapareceu nas águas do Rio Grande. Ela estava com a mãe. Até hoje o corpo não foi encontrado.

O número oficial de brasileiros que morrem ou desaparecem na fronteira não representa a realidade, segundo o próprio Itamaraty. Nos últimos cinco anos, há registro de apenas três casos de desaparecimento e dois falecimentos confirmados de brasileiros na tentativa de travessia da fronteira terrestre entre o México e os Estados Unidos. Houve, ainda, o desaparecimento de um grupo de 19 pessoas em travessia pelo mar, em 2016. Mas esse número, diz o governo, é apenas indicativo, pois o registro é resultado de informações enviadas voluntariamente por autoridades estrangeiras ou por familiares e amigos dos brasileiros. É possível que haja incidentes que não tenham sido comunicados ao Itamaraty e, portanto, a quantidade provavelmente é maior, diz o órgão.

Foto de pai e filha salvadorenhos que morreram afogados ao tentar cruzar o rio gerou comoção mundial
Foto de pai e filha salvadorenhos que morreram afogados tentando cruzar o rio gerou comoção mundial -
AFP

Os familiares aparecem nesta reportagem com informações e nomes alterados. Em alguns casos, por serem eles mesmos imigrantes ilegais, temem ser identificados pelas autoridades e deportados. Em outros, têm medo de retaliação de coiotes – como são chamados aqueles que organizam as travessias ilegais pela fronteira. Há também casos em que querem evitar que o resto da família reviva o trauma da perda.
 
Suas histórias revelam o que motiva brasileiros a deixar o país e encarar os riscos da travessia e o desconhecido num lugar novo, além de como são organizadas as viagens, o que pode dar errado e como isso tudo é vivido pelas pessoas que estão no Brasil ou aguardam seus maridos, sobrinhos, primos nos Estados Unidos.

“É como entrar numa guerra”
 
Tanto Tiago quanto outras pessoas que lidam com imigrantes ilegais dizem que muitos têm ilusão de que a travessia da fronteira é “simples”, como era há décadas atrás, mas desde o atentado às Torres Gêmeas, em 2001, o governo reforçou a segurança nas fronteiras e nos últimos anos tem tentando dificultar a entrada de ilegais, o que tem acarretado numa série de mortes.

Além disso, dizem, a fronteira se tornou mais perigosa com o acirramento de conflitos ligados ao tráfico de drogas.

“Um senhor do interior entraria desavisado numa favela do Rio de Janeiro sem saber de nada? Não entraria. Mas é esse tipo de perigo que ele corre ao tentar atravessar a fronteira”, diz Tiago.

“Já me aconteceu de não conseguir tirar um corpo do México porque o lugar onde ficava a funerária do lado mexicano estava em meio a uma guerra entre policiais e traficantes. A gente sofrendo para ajudar a família e o corpo lá”.

Isso aconteceu, por exemplo, no caso de Wesley, um dos brasileiros mortos na fronteira nos últimos cinco anos. Seu corpo foi achado no Rio Grande, do lado mexicano e só foi enviado ao Brasil semanas depois. “Quanto mais tempo passávamos sem o corpo, mais a dor aumentava”, lembra um tio.

O Rio Grande tornou-se um símbolo da crise migratória que assola os EUA
O Rio Grande tornou-se um símbolo da crise migratória que assola os EUA -
AFP

A causa de sua morte até hoje não é clara. Os parentes suspeitam que ele tenha sido assassinado pelos coiotes.

“Se a pessoa tem algum conflito com eles, se não quer carregar drogas ou algo assim, eles matam”, diz o tio.

Ele próprio já havia feito a travessia da fronteira pelo Rio Grande, anos antes de seu sobrinho morrer no mesmo lugar.

“[Na minha região, no interior do Brasil] você sempre conhece alguém que traz [brasileiros ilegalmente para os Estados Unidos]. Mas eu não tinha ideia do que era [a viagem]. A gente só vê o perigo quando já está na estrada”, diz ele, que segue como imigrante ilegal.

Ele e outros com quem a BBC News Brasil conversou contam que os grupos que organizam as travessias clandestinas são compostos por diversas pessoas e, em geral, o migrante só conhece uma ponta da cadeia. Silvio embarcou no Brasil em um avião rumo ao México. Lá, foi recebido por um agente local, que depois o encaminhou a outro e assim foi até chegarem no deserto.

A travessia pelo rio durou cerca de 15 minutos, mas foi aterrorizante para Silvio. No escuro da noite, uma pessoa do seu grupo de cerca de 50 migrantes foi levada pela correnteza e morreu afogada. “Eles [os coiotes] não estão nem aí. Se alguém fica para trás, morre lá e pronto”, diz.

“Sonho americano é só isso, um sonho”

O primo de Andrea passou mal no deserto, já do lado americano da fronteira, e foi deixado para trás. Seu corpo foi achado no dia seguinte por oficiais americanos.

Gerson trabalhava num supermercado na pequena cidade de onde vem a família. Perdeu o emprego e começou a se organizar para tentar a vida nos Estados Unidos.

Fez contato com uma pessoa que já havia organizado travessias de conhecidos dele e rumou para o México. Andrea, que já vivia ilegalmente nos Estados Unidos, estava apreensiva durante a viagem do primo. Pediu que ele a avisasse, por telefone, a cada passo que desse.

“Disse pra ele: ‘se você sumir, eu tenho que procurar por você. Se você sumir, ninguém vai avisar que você sumiu'”, conta ela.

Quando ele chegou a uma cidade fronteiriça do México, num sábado, a procurou, dizendo que os coiotes avaliaram que aquele não seria um bom dia para fazer a travessia, pois havia muitos guardas pelo caminho. Avaliariam a situação no dia seguinte. O domingo passou sem qualquer notícia de Gerson. Andrea achou que ele estivesse em contato com outros parentes ou que não tivesse deixado o México ainda. Apenas na segunda-feira recebeu a ligação da pessoa que havia organizado a viagem, dizendo que Gerson havia sofrido um acidente na travessia e estava morto.

Andrea emigrou para os Estados Unidos fugindo do ex-marido. “Não vim pelo sonho americano, vim obrigada”, diz ela. “Voei de São Paulo para o Peru. De lá, voei para Cancún, de Cancún, para a Cidade do México, da Cidade do México para Mexicali (cidade fronteiriça). Ali, atravessei a pé a fronteira e me entreguei às autoridades. Eles olharam minha documentação e me liberaram”, diz ela. Mais tarde, deu entrada num pedido de asilo ao governo americano.

Quando seu primo morreu, Andrea assinou um documento se responsabilizando pelo envio do corpo ao Brasil. Um conhecido disse a ela que, ao se apresentar às autoridades, poderia chamar atenção para o fato de que era também uma imigrante ilegal e isso talvez provocasse um processo de deportação, o que não aconteceu, ou pesar negativamente no seu pedido de asilo.

“Mas eu nem pensei nisso. Nessas horas você não tem muito tempo para pensar. E não tem que pensar, mesmo. O que eu ia fazer, deixar meu primo lá, morto? A mãe dele ficou uma semana sem falar quando soube que ele tinha morrido. Ela tinha que enterrar o filho dela.”

Ela mesma também sofreu. “Eu tive que ir ao médico, tomei remédio para dormir por muito tempo. Quando dormia, sonhava com ele. A verdade é que me senti culpada. Culpada porque não mandei mensagem para ele naquele dia. Se eu soubesse que ele estava atravessando, eu poderia avisar a patrulha, e ele seria preso, mas talvez estivesse vivo'”.

“Ele tinha o que todos têm, o sonho americano. O sonho de que você vai conseguir adquirir imóveis e coisas que você não consegue no Brasil, porque tem pouco emprego, o salário mínimo não dá pra viver e, no interior, quando você tem emprego, ganha só um salário mínimo. É aí que bate o desespero. Mas não passa disso, um sonho. Você até consegue juntar algum dinheiro, mas isso custa a sua vida, porque você vai ter dois empregos, vai dormir quatro horas por noite, e aí a sua vida passou. Quem vive o sonho americano não vive. Na grande parte dos casos, não vai acontecer, e você pode morrer tentando”, diz Andrea.

Enviando corpos de volta ao Brasil

A empresa de Tiago, a Padref, cuida da parte burocrática e prática do envio do corpo ao Brasil. Ela foi aberta depois que o próprio passou por duas perdas – um primo que morreu num acidente de carro e um conhecido que se matou após ser demitido.

Nesses casos, Tiago observou que companhias que faziam esse serviço muitas vezes cobravam preços exorbitantes dos estrangeiros. “Percebi que poderia ter um lucro pequeno e entregar um serviço importante para a comunidade brasileira”, diz ele.

A Padref cobra entre 5,5 mil e 10 mil dólares pelo serviço. Outra empresa consultada pela BBC, a G7 Mortuary Shipping, no entanto, cobra entre 4 mil e 8 mil.

Tanto ele quanto pessoas de outras companhias de repatriação de corpos ouvidas pela BBC News Brasil dizem que não é raro encontrar casos em que essas organizações cobram preços exorbitantes de estrangeiros, muitas vezes desesperados e desinformados.

Parte recém-construída do muro na fronteira EUA-México
Parte recém-construída do muro na fronteira EUA-México -
Reuters

“Imigrante não costuma ter tanto dinheiro guardado, então isso gera ainda mais sofrimento, porque a família não consegue enterrar o parente, às vezes tem que fazer vaquinha, e o trauma aumenta”, diz ele. Seu tio, que vive no Brasil, faz parte de um sindicato de funerárias de Goiás, por isso ele já tinha algum conhecimento sobre o ramo.

Assim como o Itamaraty, Tiago também diz que o número de brasileiros mortos na fronteira é maior do que o que indicam os dados oficiais. “Os motivos que levam os parentes a não registrarem essas mortes são vários – falta de conhecimento, a burocracia envolvida, a questão do idioma, o medo dos oficiais de imigração”, opina.

As mortes na fronteira são especialmente penosas porque com frequência a família fica sem respostas. “Fazemos a identificação por uma aliança ou uma tatuagem, mas a causa da morte fica faltando”, lamenta.

De imigrante ilegal a empresário
 
Tiago se considera um “dreamer”, como são chamados os imigrantes ilegais que foram levados para os Estados Unidos ainda crianças, estudaram lá e muitas vezes se consideram americanos, mas não o são oficialmente. Tiago, no entanto, teve mais sorte. Após quase dez anos como ilegal, conseguiu a cidadania por meio do seu padrasto, que é americano e patrocinou seu visto após casar-se com a mãe de Tiago.

Famílias de migrantes com crianças cruzam todos os dias o Rio Grande na tentativa de chegar aos Estados Unidos
Famílias de migrantes com crianças cruzam todos os dias o Rio Grande tentando chegar aos Estados Unidos -
AFP

O nome “dreamer” vem da sigla de um projeto para tornar essas pessoas cidadãos, o Development, Relief and Education for Alien Minors Act (Ato de Desenvolvimento, Auxílio e Educação para Menores Estrangeiros, em tradução livre). Mas também se refere às esperanças dos que deixam seus países para construir uma vida nova num lugar desconhecido.


Tiago se considera um “dreamer”, como são chamados os imigrantes ilegais que foram levados para os Estados Unidos ainda crianças e estudaram por lá - foto: Arquivo Pessoal

As de Tiago eram construir uma vida confortável e ajudar a comunidade de brasileiros que vivem no país.

Ele próprio foi ajudado por alguém com uma postura similar: um empregador de sua mãe, que é faxineira.

Tiago se mudou para os Estados Unidos com a mãe quando era adolescente, após seu pai ser assassinado num assalto. Foi estudar numa escola pública no leste de Boston, que abandonou aos 16, e foi fazer bicos. “Boston é uma cidade racista, ainda que seja um racismo velado. Os próprios professores diziam que ‘pessoas como nós’ chegaríamos no máximo a um community college (faculdades públicas, cujos cursos duram apenas dois anos)”, diz.

“Muitos dos meus amigos viraram criminosos e vários deles estão presos hoje.”

Quando finalmente conseguiu seu documento de cidadão americano, aos 21, resolveu voltar a estudar.

Fez um supletivo, pago pelo chefe da mãe e, anos mais tarde, conseguiu uma bolsa para a universidade Tufts. Foi trabalhar no mercado financeiro, ramo do chefe da mãe, mas deixou o emprego para se dedicar à empresa de repatriação funerária e seguradora.

Também se dedica a outros projetos, como uma ONG que ajuda brasileiros a navegarem o sistema educacional americano.

“Da mesma forma que me ajudaram, quero ajudar os brasileiros também.”

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