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30/08/15 às 13:57 / Atualizada: 30/08/15 às 21:04

Produzindo e comendo no vale do Araguaia – Parte 1

Bois, soja, supermercados e o frágil sistema de abastecimento de alimentos da região

Maíra Ribeiro/AXA

Edição Kassu / Água Boa News

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Produzindo e comendo no vale do Araguaia – Parte 1

Foto: Divulgação Tak Soluções

Nova Xavantina/MT - Se você mora em alguma cidade do vale do Araguaia mato-grossense, você conhece o “dia da fruta”. É nesse dia da semana, que varia de cidade para cidade, que os supermercados locais abastecem seus setores de hortifrutis. As pessoas chegam cedo aos supermercados para comprar as melhores frutas e verduras. Para os que chegam à tarde, é provável que só encontrem frutas estragadas ou verdes e restos de verduras. E, como é de se imaginar, não se encontra muita variedade nas gôndolas.

Os moradores dos 25 municípios que compõem o vale do Araguaia, na região nordeste de Mato Grosso, já estão acostumados com essa rotina semanal. A maioria das frutas e verduras vendidas nos supermercados da região vem da Central de Abastecimento de Goiás S. A., a Ceasa de Goiânia. Em algumas cidades, os caminhões percorrem mais de mil quilômetros para levar frutas e verduras, cruzando centenas de quilômetros de terra na BR-158.

Tal logística aumenta o preço dos hortifruti, porque além do consumidor pagar o frete dos produtos ainda paga o Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), que incide sobre o transporte interestadual e pode chegar a 17 % em alguns produtos.

Ao longo de duas reportagens iremos investigar o sistema de abastecimento de alimentos no vale do Araguaia e entender porque os supermercados não vendem alimentos produzidos localmente, porque os trabalhadores do campo desta região não recebem o apoio necessário para a produção, e como, apesar disso tudo, os camponeses do vale do Araguaia resistem e abastecem de alimentos as mesas dos moradores do Araguaia, tendo as feiras livres um papel estratégico para que isso aconteça.

Um mercado super concentrado

 
Em 2014, a venda anual do Ceasa de Goiânia foi de quase 900 mil toneladas de produtos, movimentando 1,6 bilhões de reais. É o quarto maior Ceasa brasileiro em volume de comercialização, somente atrás das Centrais de Abastecimento de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.

Contudo, de um modo geral, os Ceasas vêm perdendo espaço para as centrais de distribuição das grandes redes de supermercados, como o Grupo Pão de Açúcar, Carrefour e Wal Mart. Estas empresas fazem contratos de compra direta dos agricultores, cuja produção é vendida sob marca própria das redes. Vale lembrar que o setor varejista está hoje organizado num oligopólio, no qual as duas maiores redes de supermercado no país detém juntas 40 % de todo o faturamento do setor, segundo o ranking da Associação Brasileira de Supermercados de 2009.

Ocorre o que podemos chamar de globalização da comida. O alimento é tratado como um produto econômico explorado por empresas que controlam sua distribuição e oferta. Assim, seja através de centrais de distribuição dos supermercados ou através de Ceasas, o agricultor permanece subordinado ao controle exercido por estes. Já para o consumidor, resta-lhe o que os supermercados têm a lhe oferecer.

Nesse movimento econômico, nossa relação com a comida é cada vez mais distante. Não se sabe de onde veio o alimento, quem ou como o produziu. O consumidor pouco ou nada sabe sobre qual é a época da safra daquela fruta ou as condições climáticas ideais para ela crescer.

Terra de boi gordo

Boiada na BR-158. Imagem: Maíra Ribeiro

A ocupação não indígena do vale do Araguaia é recente, de meados do século passado. Nas décadas de 1960 e 1970, esta se intensificou com as políticas de integração nacional da ditadura militar. Nesse período, a região abrigou latifúndios como a fazenda Suiá Missú e a Codeara. Essas fazendas ficaram conhecidas não só pelas suas enormes extensões, mas também pelos conflitos com povos indígenas e posseiros que já ocupavam, viviam e trabalhavam na terra reclamada como propriedade privada pelas fazendas. No caso da Suiá Missu, na região de São Félix do Araguaia, o povo Xavante de Marãiwatsédé que ali vivia foi deportado em 1966 e após décadas de luta, finalmente conseguiu o usufruto exclusivo do seu território em 2012.

Este modelo latifundiário de ocupação não trouxe apenas conflitos para a região. Com terras baratas e abundantes, foram adotadas atividades voltadas ao mercado externo que ocupam grandes extensões de terras e empregam pouca mão de obra. O desmatamento acelerado deu lugar a pastagens de gado de corte e estas vem se transformando em lavouras de grãos. Produzir alimentos fica em segundo plano.

Em 2010, o Vale do Araguaia abrigava mais de seis milhões de cabeças de gado. Este número impressiona ainda mais se considerarmos a densidade demográfica, de 276 mil habitantes distribuídos em 177 mil quilômetros quadrados. Isso representa quase 23 bois para cada habitante da região. Esta média, porém, não é tão ponderada e os bois pertencem a bem poucos.

Um campo desigual

O Censo Agropecuário do IBGE de 2006 foi o primeiro a destacar a produção familiar, aquela na qual a família que mora e possui a terra faz a maior parte do trabalho e da organização da produção, do total dos dados gerais. Esse Censo comprovou em dados o que todos já sabiam: é a agricultura familiar que mais emprega no campo e mais produz alimentos. A produção familiar é praticada em mais de quatro milhões de estabelecimentos rurais em todo o país e oferece os principais ingredientes dos alimentos que chegam às mesas dos brasileiros: 81 % da mandioca, 70 % do feijão, 59 % dos suínos, 58 % do leite e 50 % das aves.

Esse Censo revelou também que Mato Grosso tem pouca agricultura familiar. Enquanto no Brasil, a agricultura familiar ocupa 24 % do território nacional, em Mato Grosso, a área ocupada pela agricultura familiar não chega a 10 %. Ao lado de Mato Grosso do Sul, Mato Grosso lidera a proporção de estabelecimentos com agricultura empresarial no Brasil, devido à combinação da ocupação histórica por latifúndios e da produção através do agronegócio. O vale do Araguaia apresenta uma proporção ainda menor de agricultura familiar do que a média estadual.

 

Fonte: Censo Agropecuário de 2006 – IBGE
 
Este dado já é bastante esclarecedor sobre a pouca produção de alimentos nesta região. Ora, se é a agricultura familiar que produz alimentos e esta está encurralada em menos de um décimo da região, logo, não se pode esperar que a produção de alimentos seja significativa.

Em estado de soja

Apesar do gado branco ainda ser a produção predominante no vale do Araguaia, a região têm sido apontada como a nova fronteira de Mato Grosso na expansão da produção de commodities pelo agronegócio, em especial a soja. Na safra de 2012/2013, o vale do Araguaia tinha 1,20 milhões de hectares plantados com o grão. Essa produção está concentrada nos municípios de Querência, Canarana, Santo Antônio do Leste, São Felix do Araguaia e Água Boa. A expansão do plantio vem ocorrendo nos municípios próximos à BR-158, como Ribeirão Cascalheiras e Bom Jesus do Araguaia. Mas também na porção norte da região, como Vila Rica, Confresa e Porto Alegre do Norte, que já possuem rota asfaltada de escoamento pelo Pará.

 

Fonte: Produção Agrícola Municipal 2013 – IBGE
 
O estado de Mato Grosso é o maior produtor de soja do Brasil e responde por 1/3 da produção nacional. O vale do Araguaia produz 15 % da soja do estado. O relatório “Projeções do Agronegócio em Mato Grosso para 2022”, elaborado pelo Instituto Mato-grossense de Economia Agropecuária (IMEA) prevê que, até 2022, a área plantada de soja mais que dobrará na região do Araguaia. Com um incremento de 1,25 milhões de hectares, a região passaria a ser responsável por 20 % da produção estadual de soja. Essa projeção levaria a região a ser a segunda maior região produtora de soja do estado, somente atrás do médio-norte.
 
Fonte: Projeções do Agronegócio em Mato Grosso para 2022 – IMEA

O cálculo dos burocratas do agronegócio é simples: a quantidade de terra na qual é possível plantar soja equivale ao potencial de expansão espacial dessa cultura. Como resultado, o avanço da soja na região gera pressão sobre a terra. Isso leva ao aumento da concentração e expulsão dos camponeses de seus lotes, seja para áreas mais distantes, seja para as cidades. Ao mesmo tempo, glorifica-se no país o agronegócio como produtor de matéria prima para exportação.

Agricultura familiar camponesa, presente!

É em meio a esta realidade monocultora e absorvida pelas cadeias produtivas do agronegócio que a agricultura camponesa do vale do Araguaia existe, sobrevive e resiste. São mais de 22 mil famílias vivendo em 91 assentamentos de reforma agrária e regularização fundiária. Há ainda posseiros, chacareiros, retireiros, ribeirinhos, pescadores e tantas outras comunidades que vivem da terra e das águas. Sem falar nos 22 povos indígenas que habitam a região, vivendo e produzindo dentro de suas terras indígenas.


Roça diversificada no Assentamento Dom Pedro, em São Félix do Araguaia. Imagem: Maíra Ribeiro

 
Porém, os dados oficiais e o senso comum, tanto na região como no estado, são de um vale do Araguaia sem produção familiar camponesa. Essa produção tornou-se invisível frente às estatísticas do IBGE e das Secretarias de Agricultura. Mas o alimento existe. Está no pomar ou nos canteiros no quintal da casa, que a família aproveita o excedente para comercializar. Além disso, os próprios moradores da cidade costumam ter nos quintais suas mandiocas, galinhas caipiras e pés de frutas.

Os principais espaços de comercialização dessa produção na região ainda são a porta de casa, as ruas ou as feiras livres. O acesso a mercados tem sido um tema central para a promoção da agricultura familiar. Mas se perguntar a um dono de supermercado da região porque ali não se vende frutas e verduras da região, ele provavelmente responderá que é porque no município não se produz. Talvez o problema está no direcionamento da questão. Antes de entender porque o supermercado não compra poderíamos perguntar porque o agricultor não vende para o supermercado?

Para o supermercado, é importante a padronização e controle sobre o produto que está comercializando. Para o agricultor, é preciso firmar um compromisso de frequência, quantidade, qualidade, aparência, a preços fixados pelo varejista. O camponês pode até conseguir uma renda maior, mas perde o que tem de mais caro: a autonomia e o controle sobre o seu trabalho.

Nesta ótica, não vender para os supermercados e sim por meios informais, como nas feiras, é um grito silencioso de insubordinação da agricultura camponesa do vale do Araguaia.

Existem iniciativas socioambientais na região que incentivam e promovem essa produção, respeitando a autonomia dos camponeses, como a Araguaia Polpa de Frutas, em São Félix do Araguaia. Esta fábrica de polpas, coordenada pela Associação Nossa Senhora da Assunção (ANSA), organização membro da AXA, compra frutas diversas de agricultores, na maioria assentados, e de moradores da cidade, para a fabricação de polpas naturais de frutas, que são comercializadas na cidade e também oferecidas nas merendas escolares. Além disso, dá apoio direto à agricultura familiar e investe na capacitação dos assentados.

Feirantes camponeses levam alimentos para a feira de Nova Xavantina. Imagem: Maíra Ribeiro
 
Já as feiras livres existem em quase todas as cidades do vale do Araguaia. A feira é um dos espaços mais populares, antigos e espontâneos de promoção da produção local de alimentos e do contato entre campo e cidade. Mais do que comercialização, a feira é um espaço de lazer, convívio e expressão. Na maioria das feiras do Araguaia, os feirantes são os próprios produtores familiares, tendo na feira o espaço de venda direta ao consumidor local. As feiras enquanto espaço de promoção da segurança alimentar e de resistência dos produtores camponeses será o tema da segunda parte desta reportagem.

Imagens: Maíra Ribeiro (exceto quando indicado na legenda)
Produção dos gráficos e tabelas: Maíra Ribeiro

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