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05/02/16 às 22:54

Itsiwaihu, Maldonado, Nimameptsi Tsiwa’Ru Marana Wadza Watsitsõpeteni!

O povo Xavante vê a morte como uma viagem, para uma grande jornada, a eternidade, um lugar especial, enfim. E cada viajante deixa um legado para os que ficam. Caso se trate de um guerreiro, seus irmãos, seu filhos precisam continuar sua história. Se é um sábio, sua memória, sua sabedoria são fundamentais para a sobrevivência daquilo que se tem mais sagrado, que são as tradições, a cultura. E também há um compromisso de perpetuar seus ensinamentos e vivenciá-los como prova de respeito e gratidão.

Há um ano aproximadamente, acompanhei a “partida”de um sábio Xavante. Houve uma comoção em toda a Nação. Uns cortaram cabelos, outros se isolaram, outros até pareciam chorar (nas minhas idas à aldeia na Terra indígena de São Marcos, poucas vezes vi um Xavante chorar).

Estas lembranças me retornaram agora com a “partida” do Maldonado – Carlos Alberto Reys Maldonado – que nos deixou no último sábado. Quem o conheceu, e os que tiveram o privilégio de com ele conviver, sabem que se trata também da “viagem”de um grande sábio.

Maldonado é um desses personagens que nos confundem; sua ótica sobre a Vida é outra, muito mais além do que percebemos. Sua capacidade de ver - e enxergar - o mundo e de nos mostrar sempre foi assustadora. Assustadora porque, generosamente, ele repartia o que sabia nas salas de aula, nos bares, nos bate-papos informais e nos deixava inquietos, incomodados com as verdades da qual ele era portador.

Por muitas vezes, eu me perdi ouvindo suas falas seguras, lógicas e amorosas. Nas conversas que tivemos, sempre fiquei comovido também pelo seu comprometimento, pela busca do conhecimento. Por seu intermédio tive a oportunidade de conhecer Dom Pedro Casaldaliga, o seu grande amigo “Pedro”. Também convivi com o conceituado dramaturgo Zé Celso Martinez Correa, o seu amigo “Zé”, amizade essa nascida nos anos 80, na resistência ao regime militar, quando ele fez parte do renomado grupo de teatro Oficina.E dentre tantas oportunidades que ele me proporcionou, ainda trouxe a Luna - sua linda e talentosa filha - pro teatro Cena Onze (e que agora está na USP cursando artes cênicas).

A sua maneira despachada de ser, quase sempre rindo de tudo, destoava dos cargos que ele ocupou, como o de Secretário de Educação do Estado e do Município, ou de representante da UNESCO, ou ainda de Professor da Unemat. Às vezes, dava a impressão de desrespeito, mas, na verdade, seus valores sempre estiveram muito além das convenções sociais. Sua cabeça e seu coração estavam noutro tempo e lugar.

As teorias defendidas por Maldonado se comprovam a cada dia, como a crueldade do sistema capitalista, ou as violências praticadas pelas grandes corporações, que investem na manutenção da miséria e da ignorância, ou sobre a importância da educação e da arte como ferramentas de mudança e conscientização. Ultimamente, ele estudava, também, a Gênisis e nos trazia sua lógica sobre Deus. Não é fácil compreendê-lo! Bem mais simples é entender somente o que interessa ao capitalismo.

Penso que nós, os não índios, deveríamos aprender com o povo Xavante, e, além de demonstrar nossa dor, também preservar os ensinamentos do sábio e generoso Professor Maldonado, comprometendo-nos em continuar na busca do conhecimento e vivenciá-lo sem preconceitos, sem meias verdades.

Ainda é necessário registrar que minha aproximação com a etnia Xavante também foi motivada pelas orientações do Mestre Maldonado, onde fui batizado pelo ancião Tobias e recebi o nome de Watanauê.

Adeus, Maldonado, até qualquer dia, meu amigo. Ou, como se diz no idioma Xavante: ITSIWAIHU, MALDONADO, NIMAMEPTSI TSIWA’RU MARANA WADZA WATSITSÕPETENI!



FLÁVIO FERREIRA é professor, advogado e acadêmico da Academia Mato-grossense de Letras
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