Série BR-319 - Moradores da BR-319: sonhos e memórias na estrada da integração
Manaus (AM) - A Reserva de Desenvolvimento Sustentável Igapó-Açu é uma área de preservação ambiental localizada entre os municípios de Beruri, Borba e Manicoré. O cenário do povoado é de muito verde e a beleza do rio Igapó-Açu, que cruza a comunidade, chama a atenção. Mas, no seu interior, a comunidade sofre com a dificuldade de transporte, por isso o assunto na região é quase sempre o mesmo: o auge e o abandono da rodovia federal BR-319, que cruza a reserva.
Placas de 'vende-se gasolina' se espalham por toda a comunidade, na maioria dos postes de energia. O clima do local é de 'pit stop', aquelas bases que carros de corrida param para checar as condições do veículo nas competições de quatro rodas.
Placas de venda de gasolina | Foto: Brayan Riker/Em Tempo
Quem se aventura pela BR-319 tem como parada obrigatória o Igapó-Açu, já que é o último ponto onde é possível encontrar serviços básicos, inclusive gasolina com facilidade. Isso porque após a comunidade, são 400 km de estrada de terra batida até chegar a um novo povoado.
Uma das moradoras que atende motoristas que trafegam pelo local é Margarida Torres, de 58 anos, que possui uma mercearia. Da janela de sua residência, por onde entrega os produtos, a mulher viu a BR-319 se transformar ao longo do tempo e lembra que já houve bons tempos para os moradores do entorno da estrada.
Margarida viveu na BR-319 durante a adolescência e retornou há quatro anos | Foto: Brayan Riker/Em Tempo
"Moro aqui desde os 14 anos. Cheguei em 1997 e essa estrada ainda era asfaltada. Passava carro e ônibus direto, o movimento era grande. Havia empresas de transporte coletivo que faziam o percurso Porto Velho-Manaus todos os dias, às 8h, 11h, 14h e em um horário da noite", lembra a comerciante.
De acordo com a moradora, era comum comerciantes de Porto Velho (RO) passarem na estrada trazendo mercadorias para serem vendidas nos municípios do Amazonas.
Reserva de Desenvolvimento Sustentável Igapó-Açu | Foto: Brayan Riker/Em Tempo
"Era carro a toda hora, de bananeiro, de fruta, tinha o que você quisesse. E não tem comparação do que era antes com a situação que está agora", diz Margarida.
Em alguns metros de caminhada, a reportagem do EM TEMPO encontrou a agente de saúde Doraci de Souza, na frente da sua casa, à beira da BR-319. Ela capinava o terreno da sua residência e fazia pequenos montes de capim, para os queimar. Enquanto a fumaça se espalhava, os filhos brincavam debaixo de uma árvore.
Doraci é agente de saúde na reserva | Foto: Brayan Riker/Em Tempo
"Minha família morava em Borba antes de nos mudarmos para cá nos anos 70. Meu pai viu a estrada ser construída quando ele ainda era adolescente, e, anos depois, quando virou madeireiro, continuou a assistir à história da BR-319. Tínhamos uma casinha e éramos sete filhos", lembra a mulher. Segundo a agente de saúde, a estrada passou a ficar abandonada nos fim dos anos 80, com a falta de cuidados, vieram buracos, a manutenção parou de ocorrer e com o lamaçal que se formava em tempos de chuva, os transportes se tornaram mais raros.
Acesso aos serviços básicos é prejudicado
A Reserva de Desenvolvimento Sustentável Igapó-Açu não possui casa de saúde e as escolas oferecem apenas o ensino fundamental. Há pouco mais de um ano, a comunidade ganhou pontos de Wi-Fi com internet rural, mas ainda carece de outros serviços.
Quem fica doente por lá, precisa pagar R$ 50 em uma Kombi fretada para ir até a cidade Castanho, a 150 km de distância. Caso o quadro do paciente seja de emergência, o município envia uma ambulância, mas as más condições da estrada e a distância são o terror de pacientes em estado grave.
Trecho da BR-319 entre o Castanho e a Reserva Igapó-Açu | Foto: Brayan Riker/Em Tempo
A população local sofre com falta de estrutura da estrada, principalmente em relação à saúde, não apenas em Igapó-Açu. De acordo com os moradores, se alguém ficar doente, muitas vezes não tem como ir em busca de socorro. Em entrevista publicada no portal do governo do Amazonas, o ex-secretário de saúde de Humaitá (município no final da BR-319), Cleomar Scandolara, em outubro do ano passado, trouxe luz à situação.
“Fica intrafegável [a BR-319). A logística é muito diferente e as ações de saúde são prejudicadas, porque não conseguimos chegar na BR, na comunidade de Realidade, e essa é nossa preocupação. Com isso, se conseguirmos o asfaltamento da BR-319 vai ficar mais fácil e a gente vai conseguir levar saúde de qualidade àquela população que realmente precisa”, diz o ex-titular da pasta.
Dificuldade para gerar renda
A situação econômica dos moradores também é prejudicada pela ausência de meios para gerar renda. Alguns trabalham com produção própria, mas o alto custo do transporte para vender as mercadorias em outras comunidades ou cidades, dificulta o comércio.
O carpinteiro Fontana Prado, de 45 anos, trabalha com a fabricação de portas, janelas, forros e móveis, e sonha com o dia em que a BR-319 estará revitalizada para que possa levar sua produção para toda a região.
Fontana acredita que, desta vez, a BR-319 será revitalizada | Foto: Brayan Riker/Em Tempo
"Tomara que saia, porque ficaria muito bom não só para mim, mas para todo mundo aqui da comunidade que vende peixe ou trabalha com agricultura. Atualmente não é vantajoso trabalhar assim, porque como a estrada é ruim, sai muito caro vender em outros lugares. E se for para levar para as cidades, é melhor comer a própria produção, porque não compensa", afirma o trabalhador.
Expectativas positivas
"Esse ano a estrada, diante do que já ficou, melhorou muito, porque quando eu morava em Manaus, não podia nem visitar minha irmã que morava aqui [na Reserva Igapó Açu]. Você só podia vir no verão, pois no inverno, com as chuvas, a estrada ficava impossível", relata Margarida, a comerciante do início desta reportagem.
Tratores têm colocado brita em trechos da rodovia, para impedir atolações de veículos | Foto: Brayan Riker/Em Tempo
O carpinteiro Fontana Prado também está mais satisfeito com a estrutura atual. Para ele, o apoio governamental ajudou a tornar a estrada mais trafegável.
"Antes não faziam nada, só fingiam. Agora tem máquinas que fazem a recuperação da BR-319. Não é muita coisa, jogam britas [pedras] para deixar o barro da estrada firma, e também retiram carros atolados. Mas já é melhor que nada. Antes, quando algum carro ficava preso na rodovia, tinha de ir andando ou então com carona até um local que pudesse chamar um guincho", diz o morador.
Previsão de finalização da obra
A BR-319 possui 887 quilômetros de extensão. Por estimativa, os trechos iniciais, de cerca de 200 km, e o final, de aproximadamente 160 km, estão asfaltados. O chamado Lote C (52 km), e o Trecho do Meio (405 km) não estão pavimentados.
A rodovia tem a promessa do governo federal de ganhar mais 52 quilômetros de asfaltamento em breve. Em dezembro último, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) assinou contrato para asfaltar o trecho C (Charlie) da BR-319. A ordem de início foi assinada no dia 18 de janeiro e a obra atualmente encontra-se na fase de elaboração de projetos básico e executivo. A previsão é que a repavimentação inicie ainda este ano.
Trecho em obras entre o Castanho e a Reserva Igapo Açu | Foto: Brayan Riker/Em Tempo
Para o segmento localizado entre o km 250 e o km 655 que possui uma extensão de 405,70 km e é conhecido como Trecho do Meio, foram contratadas as empresas Trafecon Engenharia Ltda e Consultoria Técnica S.A. As empresas vão elaborar os projetos básico, executivo e engenharia para reconstrução desta parte da BR-319. Posteriormente será licitada a execução das obras.
Condições atuais da estrada
A reportagem do EM TEMPO percorreu a BR-319 na segunda-feira (8.2.21), passou pelo último quilômetro ainda pavimentado e seguiu até a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Igapó-Açú (km 250).
Do Careiro da Várzea até o município de Castanho (cerca de 100 km) a estrada estava com tráfego regular. Havia buracos, mas não que bloqueasse a passagem. Alguns trechos apresentavam asfalto rachado ou com protuberâncias, mas nada que impedisse o carro de ir a uma média de 80 km/h.
Após o Castanho, são mais de 100 km de aventura. A rodovia começa a se degradar frente aos olhos do motorista, com maior ocorrência de buracos e partes sem asfalto. Casas ao longo da estrada se tornam mais raras, com exceção de fazendas e muitas cabeças de gado em áreas desmatadas nas margens da BR-319.
Reportagem do EM TEMPO passou pelo último trecho da estrada com asfalto | Foto: Brayan Riker/Em Tempo
A cena segue até o km 200, onde uma placa sinaliza o fim do trecho pavimentado. Dessa parte em diante, o que ganha a visão é muito barro, poeira, lama e buracos. Caso viaje com as janelas do veículo abertas, certamente o interior do automóvel (e o que tiver dentro) vai ficar empoeirado, como ocorreu com o carro da reportagem do EM TEMPO. Caso siga o percurso, a nova parada deve ser na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Igapó-Açu, no km 250. Dali, é necessária uma travessia de balsa para continuar a correr a BR-319, a estrada que integra o Amazonas com o restante do Brasil.
A reconstrução da BR-319 é uma necessidade não apenas dos moradores do entorno da rodovia, mas de todo o Amazonas, não só pelo direito de ir e vir, mas também para ter direitos básicos respeitados, como educação, saúde, comunicação, benefícios que essa rodovia pode trazer e mudar a geografia do abandono.