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10/10/19 às 12:39 | Atualizada: 10/10/19 às 12:50

Suicídios caem no mundo, mas crescem no Brasil

No dia 9 de setembro, véspera do Dia Mundial de Prevenção do Suicídio, a Organização Mundial de Saúde (OMS) publicou um relatório com dados alarmantes. No dia seguinte, lançou, com dois parceiros internacionais, a campanha “40 segundos de ação”, cujo ponto culminante será no Dia Mundial da Saúde Mental, em 10 de outubro, com o foco este ano justamente na prevenção do suicídio.

Os dados do relatório foram amplamente divulgados pela grande mídia. A cada ano, quase 800 mil pessoas se suicidam no planeta – uma morte a cada 40 segundos.  O suicídio foi a segunda principal causa de morte entre os jovens de 15 a 29 anos, atrás apenas dos acidentes de trânsito. Apesar desses números, entre 2010 e 2016 a taxa global caiu 9,8%, mas a região das Américas registrou um aumento de 6%, relacionado segundo a OMS ao acesso a armas de fogo. Parte do declínio da taxa mundial se deve ao fato de mais países terem investido em estratégias de prevenção.

Na contramão da tendência mundial, o suicídio no Brasil aumentou 7% de 2010 a 2016 – último ano da pesquisa da OMS. Entre os adolescentes o aumento foi ainda maior. Segundo uma pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), a taxa nesse grupo etário, nas grandes cidades brasileiras, aumentou 24% entre 2006 e 2015.  Em 2016, 32 pessoas se suicidaram por dia em nosso país – uma morte a cada estarrecedores 45 minutos –, ou seja, mais brasileiros se mataram naquele ano do que morreram de doenças como AIDS e câncer.

 
O suicídio está intimamente ligado aos quadros depressivos. Ainda segundo a OMS, 5,8% da população brasileira sofriam de transtornos depressivos em 2015 – um total de 11,5 milhões de brasileiros. O Brasil foi o país com o maior número de deprimidos na América Latina e o segundo nas Américas, atrás somente dos Estados Unidos.
 
O suicídio está intimamente ligado aos quadros depressivos. Ainda segundo a OMS, 5,8% da população brasileira sofriam de transtornos depressivos em 2015 – um total de 11,5 milhões de brasileiros. O Brasil foi o país com o maior número de deprimidos na América Latina e o segundo nas Américas, atrás somente dos Estados Unidos, com 5,9% de deprimidos. Em relação aos transtornos de ansiedade, frequentemente associados às depressões, nosso país foi recordista mundial em 2015, com 9,3% da população apresentando algum transtorno desse tipo, totalizando 18,6 milhões de pessoas ansiosas.

Essas questões dizem respeito ao campo da saúde mental – expressão cara ao contexto brasileiro. Esse campo de atuação profissional e assistência à saúde surgiu a partir da Reforma Psiquiátrica brasileira, iniciada na década de 80, quando o modelo assistencial em psiquiatria passou a ser reconfigurado em suas linhas fundamentais. O modelo tradicional baseado na figura do médico e no hospital psiquiátrico – modelo hospitalocêntrico – passou gradativamente a dar lugar aos chamados serviços substitutivos de base territorial. Foi nesse contexto que surgiram os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), as Residências Terapêuticas, os Consultórios de Rua etc. –, serviços de saúde espalhados pelas cidades que formam uma rede de cuidados direcionada às pessoas com transtornos psíquicos graves.

A Reforma Psiquiátrica brasileira é reconhecida internacionalmente como uma experiência rica e pujante, exitosa na substituição de uma visão estritamente médica da loucura por uma visão mais complexa e plural. Com a mudança do modelo assistencial, a loucura deixou de ser uma questão exclusiva da psiquiatria e passou a ser objeto de outros saberes. O campo da saúde mental, portanto, criado a partir da Reforma Psiquiátrica, comporta múltiplos saberes: psicologia, psicanálise, psiquiatria, assistência social, justiça, antropologia, sociologia, artes, cultura etc.

Como tantas outras políticas públicas no Brasil, a Reforma Psiquiátrica também está sendo descontruída nos últimos anos. O movimento progressista, articulado com a defesa dos direitos humanos em seus vários aspectos, tem sido desmantelado ostensivamente pela chamada “Nova” Política de Saúde Mental. O grande hospital psiquiátrico – o manicômio – voltou à cena, assim como as comunidades terapêuticas passaram a receber dinheiro público a partir deste ano. Estas, similares aos manicômios, voltadas para a dependência química, em sua absoluta maioria estão ligadas a grupos religiosos e preconizam um tratamento baseado na abstinência, na contramão dos avanços mundiais.

Diante do crescimento do suicídio e dos números recordes relativos aos quadros depressivos e ansiosos, podemos perguntar como a assistência pública de saúde no Brasil está enfrentando esses desafios. Os quadros de depressão e ansiedade – como os demais quadros psíquicos – não são como doenças naturais, enraizadas no organismo e independentes do contexto cultural, necessitam, portanto, de estratégias complexas de enfrentamento de suas causas.

Uma das faces mais agudas da depressão é o sentimento de desesperança, no qual o futuro não vale mais a pena. Já a ansiedade é um dos nomes da angústia, aquele afeto próximo do medo que nos invade em situações de perigo, como uma espécie de excesso intraduzível em palavras. Só mais alguns passos, portanto, e podemos entender nossas primeiras posições em relação ao suicídio e aos quadros depressivos e ansiosos.

Freud costumava dizer que a cura em psicanálise vinha pelo amor, no sentido pleno dessa palavra, no sentido de pulsão de vida, dos laços que nos unem aos outros e ao trabalho. Uma análise, portanto, deveria ser capaz de reestabelecer a capacidade de trabalhar e amar do sujeito. Atingido esse objetivo, ela poderia ser concluída. Ora, trabalhar e amar ainda são possíveis no Brasil de hoje?

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Brasil há atualmente cerca de 13 milhões de desempregados. Os números de subutilizados e desalentados – que simplesmente desistiram de procurar emprego – atingiram o recorde de toda a série histórica da pesquisa, iniciada em 2012; a informalidade também é a maior já registrada. Esses números indicam que um em cada quatro brasileiros em condições de trabalhar está desempregado, trabalhando menos horas do que gostaria ou desistiu de procurar emprego. Não à toa, alguns estudos indicam que vivemos a maior fuga de cérebros da nossa história. Se não há esperança no futuro, melhor ir procurá-lo em outro lugar.

Restaria o amor, constitutivo dos laços que nos unem aos outros, à família, aos amigos, aos parceiros amorosos. Basta, no entanto, uma rápida olhada no noticiário diário ou nas redes sociais para descrermos também desse caminho.

Diante dessa situação, não admira que os números relativos ao suicídio, à depressão e aos transtornos ansiosos estejam nas alturas. Para enfrentá-los, precisamos de políticas públicas de saúde que entendam a complexidade desse fenômeno e, sobretudo, a complexidade do campo da saúde mental. Não será retornando a uma visão exclusivamente médica dos problemas psíquicos que diminuiremos esses números.


Sobre o autor Paulo Ritter
Psicanalista, formado em Psicologia (UFRJ), com Especialização em Saúde Mental e Mestrado em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Trabalhou por 15 anos em ambulatórios de saúde mental na rede pública de saúde (SUS), em bairros distantes da Zona Sul carioca, frequentemente esquecidos pelas políticas públicas. Autor do livro "Neuroses atuais e patologias da atualidade", atualmente trabalha em consultório particular no Rio e é professor na Psicologia da Universidade Veiga de Almeida. Email: paulo.ritter@hotmail.com
 
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