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21/08/19 às 20:57

Opinião: Uma nuvem negra que anuncia um futuro terrível

Não dá para saber ao certo o que escureceu o céu de São Paulo no último dia 19. Mas, independentemente do que tenha sido, foi um péssimo presságio no horizonte deste país.

Este planeta quase inteiro azul é circundado por duas grandes faixas amarelas, uma ao sul, outra ao norte do Equador. São desertos: muitos desertos, duas cintas de desertos abraçando a Terra. Ao norte, tem o Mojave e o de Chihuahua, na América do Norte; o do Sahara, na África; o da Arábia, no Oriente Médio; e vários na Ásia, inclusive o de Thar e o de Gobi. No sul, tem o de Kalahari, na África; o Grande Deserto Arenoso, na Austrália; o do Atacama, no oeste da América do Sul. Mas aí de repente essa faixa amarela do sul é interrompida. Do outro lado dos Andes, surpreendentemente, há uma imensa mancha verde.
 
É de dentro dessa mancha que eu lhes escrevo. Estou aqui na latitude 23 graus sul - mais especificamente na cidade de São Paulo. Em qualquer outro continente, se eu estivesse sobre o paralelo 23, tanto o do sul quanto o do norte, longe dos ares úmidos do oceano, eu estaria num deserto. Mas não aqui, no lado oriental da América do Sul. Bem ao contrário, aliás: estou na beira de uma das zonas mais verdes e biodiversas do planeta, um celeiro que produz boa parte de tudo o que se come no mundo. Está aí um dos mistérios da Terra: como é que uma vastidão fértil foi surgir bem na faixa onde todas as condições climáticas indicam que deveria haver um deserto? Isso nunca fez sentido.

Passou a fazer só na última década, graças a uma série de pesquisas de cientistas de várias especialidades, que estão desvendando o complexo mecanismo planetário que fertiliza boa parte da América do Sul do lado de cá dos Andes. Parece que a Floresta Amazônica é uma espécie de bomba que puxa a água do Oceano Atlântico e a arremessa com força nos Andes, de onde ela se espalha pelo continente todo. O mecanismo que bombeia a água são as gigantescas árvores da floresta, cujos trilhões de folhas transpiram um volume mastodôntico de minúsculas gotas d’água no céu. Essa injeção de gotas vai empurrando o ar, que puxa a umidade do mar. O resultado são rios de gotículas e vapor, mais volumosos que os rios que correm no chão, mesmo o gigantesco Amazonas.
 
A floresta fica constantemente chupando água do oceano e irrigando de graça as terras do Centro-Oeste, do Sudeste e do Sul brasileiros, da Argentina, do Uruguai, do Paraguai. “Se estivermos certos, a Amazônia é uma espécie de coração do continente, sempre bombeando e irrigando tudo”, diz o engenheiro agrônomo Antonio Donato Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), um dos formuladores da teoria.

Lembrei disso quando vi o pretume que anoiteceu São Paulo na tarde do dia 19. Talvez aquela cena de terror tenha sido consequência da queima da bomba-floresta. Em chamas, ela pode ter passado a impulsionar fuligem, em vez de água. Perguntei a Nobre. Ele acha que tem a ver. “Fumaça e fuligem têm esse poder de ‘poluir’ nuvens a ponto de perturbar sua dinâmica de formação de gotas”, explica ele. Essas partículas atraem água, formando gotas - muito mais gotas do que seria normal. “E esse é o contrassenso: há um número maior de gotas, nuvens maiores, mas que produzem menos chuva ou nenhuma. E foi precisamente o que se viu em São Paulo”, diz.

Nobre acha que foi isso que aconteceu, mas não tem certeza. Um colega dele do Inpe, Alberto Setzer, discorda. Para ele não foi a fuligem que tapou a luz sobre São Paulo, mas uma nuvem monumental, atípica, uma tempestade extrema. Se Setzer estiver certo, a cena apocalíptica de ontem não foi consequência de problemas na bomba, mas de algo mais global: as mudanças climáticas, que aumentam a ocorrência e a intensidade de tempestades, mesmo em períodos do ano nos quais elas não costumam ocorrer.
 
É difícil saber ao certo quem tem razão. Não é fácil estudar a atmosfera da Terra. Não dá para levá-la para o laboratório. Não tem como comparar o céu de São Paulo com a Amazônia em chamas com o céu sem a Amazônia em chamas. Só há uma Amazônia. Só há uma atmosfera.

O fato é que a floresta está em chamas. Rondônia está criminosamente ardendo, assim como o Mato Grosso. É fato também que este continente encharcado está secando. O Cerrado do Centro-Oeste brasileiro, que recebe boa parte da água bombeada, sempre foi uma espécie de esponja, de onde transbordam as águas que alimentam quase todos os grandes rios do continente. A cada ano, tem menos água nesse reservatório, e por isso a cada ano tem menos vazão nos rios sul-americanos. Num continente mais seco, as coisas queimam mais fácil. Fato também é que as mudanças globais estão se acelerando, e que a queima da floresta, ao encher a atmosfera de gás carbônico, agrava o problema.

Independentemente de qual for a explicação para a cena tétrica desta semana em São Paulo, é certo que o que se viu foi um presságio de algo grave. E é certo também que o aumento do ritmo da devastação, favorecido pelo vale-tudo defendido pelo novo governo e pelo relaxamento do monitoramento, está aproximando o dia em que a bomba da floresta vai parar de funcionar.
 
O céu está negro no horizonte, e a tempestade que se aproxima se anuncia terrível. Quando ela vier, será o fim do agronegócio brasileiro, já que o país, ao contrário de Israel, por exemplo, investe cada vez menos em ciência e não tem o know-how para produzir sem umidade. E aí este paralelo 23 de onde escrevo será bem parecido com qualquer outro paralelo 23 do mundo: um deserto.
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