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23/07/17 às 09:16

E a água levou: Litoral baiano chega a perder 1 km de continente em dez anos

Se você conheceu a Praia de Coqueiral, em Prado, no Extremo-Sul do estado, há mais de dois anos - e, desde então, não retornou -, talvez se assuste com a paisagem hoje. O recepcionista Nark Cleyton, da pousada Ponta de Areia, uma das mais antigas da região, ainda custa a acreditar na mudança que aconteceu, diante dos olhos de quem passa e de quem vive por ali. 

“Antes, tinha uma rua na frente da pousada e a praia era bem distante. Dois anos atrás, uma ressaca destruiu até o restaurante que a gente tinha. Agora, na maré cheia, o mar fica a três, quatro metros da piscina”, conta. A rua que ‘não está mais lá’ ajuda a dar uma noção da gravidade: a Praia do Coqueiral é um dos locais mais afetados pela erosão marítima em Prado, que decretou situação de emergência em junho.
Também no Sul do estado, a cidade de Mucuri decretou emergência devido à erosão em maio. Os dois municípios ilustram bem uma realidade presente em boa parte da costa baiana: em alguns locais, como a foz do Rio Jequitinhonha, em Belmonte, também no Sul, e do Rio Real, na divisa da Bahia e de Sergipe, a erosão levou a faixa de terra a diminuir até um quilômetro em dez anos. 

Veja, abaixo, abaixo, a variação na foz do Rio Real, entre 1984 e 2006:

Os dados fazem parte de um estudo inédito dos professores José Maria Landim Dominguez, Abilio Carlos da Silva Pinto Bittencourt e Junia Kacenelenbogen Guimarães, do Instituto de Geociências da Universidade Federal da Bahia (Ufba). A pesquisa será publicada no livro Panorama da Erosão Costeira no Brasil, do Ministério do Meio Ambiente e editado pelo professor Dieter Muehe, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A Ufba é responsável pelo levantamento nos estados da Bahia, Sergipe, Alagoas e Paraíba e analisa os anos de 2006 e 2016. 

 
Ação fluvial

A mudança na paisagem - e a consequente diminuição de certos pontos do litoral baiano são fruto de uma variação natural que ocorre nas áreas onde há desembocaduras fluviais. No caso de Prado e Mucuri, por exemplo, o litoral é a foz dos Rios Jucuruçu e Mucuri, respectivamente. Em dez anos, a área de continente das duas cidades foi reduzida em até 900 metros e 400 metros, respectivamente.


“Tanto pode ter erosão, que é um recuo da linha de costa continente adentro, como pode ter progradação, que é o avanço da linha de costa mar adentro. Toda região de desembocadura fluvial é muito instável, porque é um embate entre as ondas e o rio”, explica o professor José Landim.
 
E a transformação é rápida: pode ser observada em poucos anos. Para dar uma ideia, as previsões de aumento do nível do mar devido ao aquecimento global indicam a subida de um metro em um século. Ou seja, em dez anos, o mar subiria ‘apenas’ 10 cm. 

De acordo com Landim, dos mil quilômetros do litoral baiano, cerca de 250 quilômetros - ou seja, um quarto do total - são sujeitos às maiores variabilidades de linha de costa, associados a desembocaduras fluviais (veja no mapa, nos ícones em vermelho). Mas não quer dizer que o restante esteja fora de perigo, embora a mobilidade da linha seja menor.  
 
Em vermelho, no mapa, os trechos sujeitos a sofrer maior variabilidade - seja de erosão ou de progradação (Fonte: José Maria Landim Dominguez, Abilio Carlos da Silva Pinto Bittencourt e Junia Kacenelenbogen Guimarães, professores do Instituto de Geociências/Ufba)

“Qualquer ocupação, entretanto, deve obedecer uma faixa de recuo, medida a partir da linha de preamar (maré alta), considerando os diferentes processos que ocorrem da linha de costa, na qual seria proibida a construção de edificações permanentes. A largura desta faixa deve ser determinada para cada trecho de linha de costa a ser ocupado”. 

Hoje, não há nenhuma determinação na costa além da delimitação pertencente à União, de 33 metros, e de uma lei da Constituição estadual, de 1989, que proíbe construções particulares a menos de 60 metros a partir da linha de preamar. 

 
“A erosão é um processo natural, por isso, essas faixas (próximas ao rio) não devem ser ocupadas de maneira nenhuma. Tudo nessas faixas é vulnerável”, explica o professor. De acordo com Landim, a faixa de recuo de cada local deve ser calculada individualmente - há localidades onde ela pode chegar a mais de 200 metros.  

A rua sumiu

A rua que existia na frente da Pousada Ponta de Areia, em Prado, era a Avenida Beira Mar. Com seus quatro quilômetros de extensão, ela chamava atenção na costa do município - essa que, por sua vez, chega a 84 quilômetros.

 
“A Beira Mar deixou de existir totalmente há dois meses, quando lançamos o decreto”, conta o secretário de administração de Prado, Luiz Dupin. Hoje, a avenida só existe na memória dos moradores, visitantes e do Google Street View. No recurso do Google, as imagens panorâmicas da região são de 2012.

Nas fotos, é possível ver carros estacionados. Hoje, para chegar à Ponta de Areia de carro, a entrada teve que mudar. “Tivemos que abrir uma rua atrás porque o carro não tem como passar. A praia praticamente não existe mais. Quando os hóspedes chegam, se assustam. Falam: ‘nossa, não acredito’, lembrando de como era e como está hoje”.

 
Mas não para por aí. O resort La Isla, um dos maiores da região, fechou em 2015 devido à erosão, e segue em obras até hoje. Procurados pelo CORREIO, os representantes do empreendimento não se manifestaram.  Em seu site, no entanto, uma mensagem anuncia as reformas no local. “Como o mar mudou, iremos acompanhar esse ciclo da natureza”, afirmam.
  
O mapa mostra como Prado era em 2006, vista por satélite. Já a linha em vermelho indica como a linha da costa ficou em 2016 (Fonte: José Maria Landim Dominguez, Abilio Carlos da Silva Pinto Bittencourt e Junia Kacenelenbogen Guimarães, professores do Instituto de Geociências/Ufba)
 
De acordo com o secretário Luiz Dupin, desde 2013, o impacto tem sido maior. Foi nesse período que a barra do Rio Jucuruçu foi em direção ao centro da cidade. A erosão, que acontecia principalmente no Balneário de Guaratiba, mudou de direção. 
 
“O mar começou a comer uma faixa litorânea muito grande. Estamos numa situação caótica. O La Isla perdeu boa parte da frente e quase todas as barracas de praia foram destruídas. É muito angustiante, porque a gente vê as pessoas passando dificuldades, e a geração de emprego e renda sendo ameaçada". O prejuízo em Prado chega a R$ 6,2 milhões, segundo a Defesa Civil do Estado (Sudec). 

Prejuízo

Em Mucuri, o prejuízo recente foi de R$ 6,1 milhões, também de acordo com a Defesa Civil. Quatro ruas horizontais, paralelas à praia, sumiram. Outras cinco transversais também. Pelo estudo dos professores do Instituto de Geociências da Ufba, a erosão na costa chegou a reduzir 400 metros, entre 2006 e 2016.
 
O mapa mostra como Mucuri era em 2006, vista por satélite. Já a linha em vermelho indica como a linha da costa ficou em 2016 (Fonte: José Maria Landim Dominguez, Abilio Carlos da Silva Pinto Bittencourt e Junia Kacenelenbogen Guimarães, professores do Instituto de Geociências/Ufba)

O administrador da pousada Kambuká, Adilson Júnior, já não sabe o que fazer. Com a pousada em funcionamento há 30 anos, os custos para mantê-la de pé desde 2010 só aumentaram. Só com matéria-prima – incluindo as pedras para fazer uma contenção na frente do empreendimento – já gastou cerca de R$ 550 mil. Além disso, ele estima que a ocupação tenha caído em até 80%, em oito anos. “Fora uma parte da pousada que o mar levou. Eu perdi uns 600 m² de área livre da pousada, que tem quase 6 mil m² no total. Hoje, qualquer ressaca marítima que vem entra água na nossa piscina”. 

Segundo o prefeito de Mucuri, José Carlos Simões, o trecho mais crítico é uma distância que vai da beira da praia até a localidade chamada de Vila da Suzana.  Em 10 anos, ele estima que o rombo já chegou a R$ 20 milhões, incluindo destruição total de hotéis, pousadas, casas e barracas.
  • A cidade de Mucuri, no Sul do estado, sofre com a erosão marítima (Foto: Prefeitura de Mucuri ) A cidade de Mucuri, no Sul do estado, sofre com a erosão marítima (Foto: Prefeitura de Mucuri )
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  • Barracas, casas e pousadas foram destruídas pelo mar (Foto: Prefeitura de Mucuri ) Barracas, casas e pousadas foram destruídas pelo mar (Foto: Prefeitura de Mucuri )
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  • O prejuízo é de mais de R$ 6 milhões só este ano (Foto: Prefeitura de Mucuri ) O prejuízo é de mais de R$ 6 milhões só este ano (Foto: Prefeitura de Mucuri )
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  • Funcionários da prefeitura tentam conter os efeitos da erosão (Foto: Prefeitura de Mucuri) Funcionários da prefeitura tentam conter os efeitos da erosão (Foto: Prefeitura de Mucuri)
“Toda a cidade foi construída às margens da Orla. Nós percebemos que estávamos em situação de emergência quando mais um hotel, uma pousada e uma casa foram abaixo. Aí pensamos: ‘daqui a pouco vai ser a escola, o pronto socorro e o fórum, se a gente não tomar providência”. 

A providência veio com o decreto de emergência. Tanto Mucuri quanto Prado já estão elaborando projetos de engenharia para submeter ao governo federal, a fim de angariar recursos para as obras. Na primeira, será uma obra de ‘engordamento da praia’ – aumentar a área de areia, enquanto a outra deve construir ‘espigões’ para contenção.

 
 “O decreto possibilita contratações emergenciais para contenções que venham retardar o avanço do mar. O que a gente tem observado é que a própria população tenta fazer esse trabalho colocando pedras, saco de areia e todo tipo de contenção, mas não resolve o problema. Então, é necessário fazer uma obra estruturante e contar com apoio da Defesa Civil nacional e do estado para dar uma resposta à população”, explica o superintendente da Sudec, Paulo Sérgio Menezes. 

Uma obra de engordamento da praia, que é uma das que oferece melhores resultados hoje, segundo o professor Landim, pode chegar a R$ 50 milhões, em alguns casos. As intervenções já foram realizadas em cidades do Espírito Santo e em Jaboatão dos Guararapes (PE). 

Gestão de praias poderá ser feita por prefeituras

Desde a semana passada, prefeituras de todo o Brasil podem solicitar a gestão das próprias praias ao governo federal. Já que as praias ficam na área que pertence à União - 33 metros  contados a partir da maré alta -, todas as decisões cabiam ao ente federal.
 
Agora, devido a uma portaria publicada no Diário Oficial da União, foi aprovado um modelo de gestão que transfere a responsabilidade pelas praias para os municípios por 20 anos, com possibilidade de prorrogação. Após a prefeitura fazer o requerimento, a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) terá até 30 dias para análise. 

Em Prado, que sofre com a erosão marítima, a prefeitura deve analisar se vai aderir à novidade, de acordo com o secretário de Administração da cidade, Luiz Dupin. “A gente pensa, a princípio, mas temos que ver melhor a estrutura legal e o que viria junto para fiscalizar, as licenças ambientais, etc”.
 
Já em Salvador, onde a gestão das praias pela União teve um episódio dramático com a demolição das barracas na Orla, em 2010, a prefeitura deve solicitar a transferência, segundo o secretário municipal de Desenvolvimento e Urbanismo (Sedur), Guilherme Bellintani. 

“A gente já esperava esse contexto normativo por uma compreensão tanto dos municípios quanto da própria União de que ela não tem condição de cuidar de todos os seus imóveis, porque são muitos e a União é distante dos entes federativos e instâncias locais”, explica.

Para Bellintani, na prática, são as prefeituras que já cuidam de suas respectivas praias. “É o município que já varre, que faz obras de ordenamento e urbanização, então, certamente está no foco do município (de Salvador) essa transferência”. 

Ele acredita que essa mudança deve promover a desburocratização da gestão dessas áreas. “Até com eventos. Hoje, para fazer o Réveillon, por exemplo, a gente precisa da autorização da SPU”. O CORREIO procurou a Superintendência do Patrimônio da União por três dias, mas nenhum representante se manifestou sobre o caso.
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