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04/04/20 às 19:25 / Atualizada: 04/04/20 às 19:59

Vale do Araguaia – Terra sem Saúde Pública e (até agora) sem coronavírus

Eduardo Gomes – Boamidia

AguaBoaNews

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Vale do Araguaia – Terra sem Saúde Pública e (até agora) sem coronavírus

Foto: José Medeiros

Imaginem uma região formada por 40 cidades com cenários deslumbrantes iguais ao da foto da capa – feita pelo fotógrafo José Medeiros – onde vivem 444.858 habitantes e a distância de seus extremos seja de 1.150 quilômetros por rodovia em parte sem pavimentação. Essa é a área considerada socialmente Vale do Araguaia, mas que na verdade tem extensão maior e mais municípios, que são desligados daquele território por se situarem próximos a grandes centros de outras regiões. Agora tentem avaliar o risco a que essa população está exposta diante da pandemia do coronavírus por conta da precariedade de sua infraestrutura hospitalar, distanciamento de moradores dos leitos, limitada e concentrada quantidade de unidades de terapia intensivas (UTIs). Mas essa crise mundial na esfera da saúde por enquanto é um risco, um susto a mais no dia a dia de seus cidadãos que enfrentam problemas até para atendimento de baixa complexidade e que não contam com sequer um hospital que faça cirurgia cardíaca.
 

O rio Araguaia, que dá nome a região, abusa do direito de ser bonito - Foto:
Marcos Bergamasco em arquivo

Assim é o Araguaia, região tão extensa que sequer consegue juntar ao conceito de sua base territorial as cidades de Santo Antônio de Leverger, Jaciara, Campo Verde e Primavera do Leste – isso somente na margem direita do rio Xingu, pois do lado oposto há Sinop, Nova Ubiratã, Feliz Natal, União do Sul, Peixoto de Azevedo, Marcelândia, Matupá e várias outras.


A rodovia BR-158 aos pés da Serra do Roncador, em Barra do Garças
- Foto:
Boamidia em arquivo

O Araguaia é uma região que esbanja beleza, misticismo, produção agropecuária, mas que não tem Saúde Pública – ou quase isso. O governo estadual sempre a relegou a plano inferior. Tanto assim, que a mesma pejorativamente ganhou o jocoso apelido de Vale dos Esquecidos. No poder desde primeiro de janeiro de 2019, o governador democrata Mauro Mendes não investiu um centavo de real sequer naquela área – os recursos para lá canalizados são repasses constitucionais.


Carreta cruza ponte na conurbação Barra, Pontal e a goiana Aragarças  - Foto:
Boamidia em arquivo
 

A conurbação: Barra, Pontal (centro) e Aragarças (acima) - Foto:
Tchélo Figueiredo no site público do Governo de Mato Grosso em arquivo

A região tem apenas 20 UTIs, sendo 10 do município de Barra do Garças e outro tanto da cooperativa médica Unimed; todas naquela cidade, que além da demanda local e dos municípios mato-grossenses em seu eixo de influência, também atende a vizinha goiana Aragarças, com população de 20.118 habitantes – Aragarças, Barra e Pontal do Araguaia formam uma conurbação. O ideal, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) seriam três UTIs para cada grupo de 10 mil habitantes, ou seja, para a região seriam necessárias 134 UTIs. O déficit é de 114 UTIs. É preciso que se observe que essa proporção é para o cotidiano, sem levar em conta a pandemia, e que as mesmas precisam de distribuição de modo a encurtar a distância entre o paciente e o leito.
Em Barra, o prefeito Beto Farias (MDB), determinou que a estrutura do antigo Hospital MedBarra, desativado, na região central da cidade, seja transformado em hospital de campanha para atendimento a eventuais casos de coronavírus. O hospital pertence a um grupo de médicos cooperados da Unimed, tem 52 leitos e fechou as portas com a recente construção de um hospital da Unimed.


Neste hospital, a metade das UTIs do Vale do Araguaia - Foto:
Prefeitura de Barra do Garças em arquivo

As UTIs em Barra estão em funcionamento no Hospital Municipal Milton Pessoa Morbeck, onde permanecem sempre com pacientes,  o que, em tese, significa zero de oferta para o coronavírus.


O Hospital Regional Paulo Alemão, em Água Boa - Foto: AguaBoaNews

A carência de UTIs preocupa políticos, médicos e a população de modo geral. Em Água Boa (26.721 habitantes) funciona o Hospital Regional Paulo Alemão, que atende o polo vizinho àquele município, mas o mesmo não tem UTI. Nas outras grandes cidades da região, UTI não passa de sonho. É assim em Confresa (30.933), Vila Rica (26.037) e Nova Xavantina (21.234). No Araguaia a saúde vai aos trancos e barrancos.

Em Confresa a referência é o hospital municipal, que tem apenas sete respiradores mecânicos, conforme revela o prefeito e médico Rônio Condão (PSDB).

Em São Félix do Araguaia o hospital que atende a região, é municipal - Foto:
Vanderson Ferraz – Agência AMM em arquivo

Em São Félix do Araguaia (11.708 habitantes) a prefeita Janailza Taveira (SD) acaba de inaugurar o Hospital Municipal Prefeito João Abeu Luz, com 40 leitos e cinco respiradores; essa unidade hospitalar funciona como se fosse um hospital híbrido, meio municipal e meio estadual, pois é referência aos municípios de Alto Boa Vista (6.820) e Luciara (2.077), que integram o Consórcio de Saúde do Araguaia (CISA).

No sábado, 28 deste março, um paciente com sintomas de coronavírus foi removido de avião, do Hospital Municipal de Confresa para o Hospital Regional de Sorriso, no Nortão. A aerovia que levou o paciente ao atendimento tem 500 quilômetros – é a mesma distância de Lisboa a Madrid, as duas capitais européias mais atingidas pelo vírus de origem chinesa.

Região do Brasil Interior com roteiros turísticos que recebem bom fluxo de visitantes e com sua base econômica no agronegócio que tem movimentação nacional. o Araguaia fica exposto ao coronavírus, sem que tenha sequer condições de atender à demanda pela medicina de baixa complexidade. Não há nenhuma luz no fim do túnel sinalizando possibilidade de mudança da realidade nos próximos meses e, quem sabe, até mesmo anos. Essa situação precupa o presidente da Comissão de Saúde da Assembleia Legislativa e único parlamentar estadual residente naquela região, o deputado José Eugênio Paiva, o Dr. Eugênio (PSB), que é médico anestesiologista radicado em Água Boa.


Dr. Eugênio quer a questão tratada com profundidade e abrangência
- Foto:
Ângelo Varela no site público da Assembleia Legislativa em arquivo

Dr. Eugênio alinhava ações da Assembleia com o governo para atuação emergencial em razão do coronavírus, mas ele defende que a questão seja tratada com profundidade e abrangência, além da pandemia. O deputado observa que somente em Água Boa, Nova Nazaré (3.849 habitantes) e Ribeirão Cascalheira (10.206) existem 31 aldeias em territórios dos Xavante. Cita que nesses aldeamentos a subnutrição atinge duramente crianças e idosos, e que o alcoolismo afeta boa parte dos adultos. Emergencialmente Dr. Eugênio defende o isolamento das aldeias com a proibição de entrada de não-indios e a saída dos mesmos. “A Funai falou sobre isso, mas não vejo nada de concreto, a não ser a iniciativa de índios do Parque Indígena do Xingu. Porém, quanto aos Xavante, nossos vizinhos, a desproteção é total“, lamenta.

O reconhecimento da pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS) aconteceu em meio a um levantamento detalhado da Saúde Pública no Araguaia, que está em elaboração pelo gabinete de Dr. Eugênio, e que conta com informes sobre os povos indígenas, que são contatados por um de seus assessores, Marcelo Kamaiurá, do Alto Xingu. “Nos últimos dias o Marcelo não participa presencialmente do levantamento em Cuiabá, pois recomendei que ele permaneça em sua aldeia, para cumprir o isolamento social recomendável nesse momento”, revela.
 
Fracionamento


 

Vila Rica busca atendimento de saúde em Palmas, no Tocantins - Foto:
Prefeitura de Vila Rica em arquivo
A precariedade da Saúde Pública na região e seu distanciamento de Cuiabá cria alguns cenários que em muitos casos mascaram números estatísticos da Secretaria de Estado de Saúde (SES). Isso, porque alguns municípios buscam atendimento em Palmas (TO), como acontece com Vila Rica, Santa Terezinha, Santa Cruz do Xingu, Confresa e São José do Xingu; ou em Goiânia, como acontece com Cocalinho, Alto Araguaia, Alto Taquari. Araguainha e outros.

Nas pequenas cidades do Araguaia é comum a visita periódica de médicos moradores em outras localidades para o chamado turismo profssional de saúde. Cartazes em bares, padarias, postos de combustíveis e farmácia anunciam data e horário do atendimento do Dr. Fulano de Tal, clínico geral ou especialista.

A visita dos médicos é real, mas em número reduzido. O médico que mais atende à região é o Dr. Ambulância, que leva pacientes a hospitais em Cuiabá, Goiânia ou Palmas.

DISCRETAMENTE – Sem alarde pra não despertar o Ministério Público, prefeituras da região se unem em informais consórcios para pagamento de aluguel de casas de apoio em Goiânia, onde são mantidos cidadãos à espera de atendimento pelo SUS. Como se presta conta dos gastos com os senhorios é mistério que somente a falta de saúde no Araguaia entende.

E se a região ganhasse as UTIs que precisa?


 

Respirador é imprescindível na fase aguda do coronavírus - Foto: USP em arquivo
UTI é mais do que a complexidade da estrutura física para seu funcionamento. Não se pode pensar em uma unidade isolada, mas na instalação de várias no mesmo local.

Tomando-se por referência o paulistano Hospital Sírio-Libanês, a instalação de 10 UTIs em um hospital exige equipes compostas pelos seguintes profissionais:

Nove médicos, cinco enfermeiros e 22 auxiliares de enfermagem, um fisioterapeuta, um bioquímico,  duas atendentes e uma secretária.

Ese grupo de UTIs exige quatro respiradores de volume e sete respiradores de pressão, além de um rim artificial deslocado da área de hemodiálise, quando necessário.

Esse pessoal, além da qualificação profissional, precisa de treinamento para se entrosar, atuar como equipe. Não há disponibilidade desses profissionais em Mato Grosso. Conseguir recursos para instalar UTIs, definir hospitais estruturados para as mesmas, e encontrar e treinar pessoal não seria fácil. Enquanto isso, a pandemia ronda, ameaça. Tomara que o coronavírus não encontre os caminhos que levam ao Araguaia, ou Vale dos Esquecidos, onde a presença do governo estadual tem nome: vácuo.

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