Segundo os policiais federais, a cocaína produzida na Bolívia, Colômbia e Peru atravessava a fronteira de carro, barco ou avião. Os carregamentos seguiam para fazendas no interior de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. De lá, a droga era transportada em carretas (normalmente com fundos falsos) para depósitos nos estados do Paraná e São Paulo. O material já vinha separado por destino: rótulos diferentes serviam para identificar clientes e também o grau de pureza da droga. Separada em lotes, a cocaína deixava os depósitos para os clientes. Uma parte seguia dos portos de Santos e Itajaí em navios para Europa e África. Depois, para os Estados Unidos e para a Ásia. Outra parte ficava no Brasil, entregue em São Paulo para traficantes do Primeiro Comando da Capital (PCC) e, no Rio, para criminosos do Comando Vermelho.
A pesquisadora Maria Isabel Couto, da Diretoria de Análises de Políticas Públicas (DAPP) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), lembrou que a operação que levou Cabeça Branca à prisão foi deflagrada pouco mais de um ano depois da emboscada na fronteira do Paraguai com o Brasil que terminou com a morte do traficante Jorge Rafaat.
— A prisão de Cabeça Branca pode ser uma boa notícia, desde que não seja uma ação pontual. É preciso que o governo federal entenda o papel essencial que desempenha no enfrentamento de um dos principais problemas de segurança pública no Brasil — afirmou Maria Isabel.
O perfil de um traficante
De hábitos refinados, apreciador de carros velozes, vinhos caros e ternos sob medida, o traficante Luiz Carlos da Rocha, o Cabeça Branca, pretendia se matricular num curso de culinária para melhorar seus dotes na cozinha. Queria cozinhar melhor — já era bom, dizem os amigos. Pouco antes de ser preso, chegou a visitar dois chefs em São Paulo.
A habilidade no fogão era apenas mais um hobby. Com o tempo virou também sua arma mortal para conquistar mulheres bonitas. Foi casado quatro vezes e teve quatro filhos. A última delas, Fernanda Benedito da Silva, de 23 anos, foi levada para prestar esclarecimentos quando o marido foi preso pela Polícia Federal. Os dois dividiam uma casa de alto padrão, com piscina, na Rua Santa Bárbara, na área nobre de Sorriso, em Mato Grosso. Tinha cachorro e empregada.
Levada para prestar depoimento, a mulher jurou que havia casado com Vitor Luís de Moraes, de 55 anos, nascido em Tocos de Moji, Minas Gerais, no dia 7 de janeiro de 1962. Um homem três anos mais jovem que Luiz Carlos da Rocha, seu verdadeiro nome, nascido no ano de 1959 em Uraí, cidade de 13 mil habitantes, próxima a Londrina, no Paraná. Um pecuarista que cursou dois anos de Administração, na Faculdade Paranaense (Faccar), em Rolândia, no Paraná, e que pretendia voltar à universidade para estudar Direito.
Foram tantas identidades falsas, operações plásticas e implantes de cabelos que os policiais federais ficaram na dúvida quando chegaram até Vitor Luís. Monitorado em grampos e vigiado nos deslocamentos, foi difícil confirmar que Vitor e Luiz Carlos eram a mesma pessoa. Foi necessário um trabalho detalhado de peritos do Instituto Nacional de Criminalística da Polícia Federal. Depois de estudarem o caso, usando todas as imagens disponíveis, os peritos Paulo Max Reis e Frank Favero elaboraram um laudo de 23 páginas, concluindo que trata-se da mesma pessoa.
— Ele é diferenciado dos demais que recebem esse tipo de inspiração. Ele confessou tudo e agora se sente aliviado — disse o advogado Fábio Ricardo Mendes Figueiredo, responsável pela defesa do traficante.
O maior traficante do país cresceu em Londrina, no Paraná. Jogava bola com os amigos nas ruas, frequentava bares e boates. Serviu o Exército e, assim que deixou o quartel, ganhou do pai um Dodge Polara zero. Nessa época era conhecido como Pedregoso.
No carro rebaixado e com som, desafiava a curvas da cidade e, já naquela época, fugia da Polícia Militar.
— Era muito ruim na bola, mas fazia um sucesso grande com as mulheres — contou um dos amigos de infância.
A história mudou na noite de primeiro de julho de 1987, dez dias antes de completar 30 anos. Já no segundo casamento, Pedregoso encontrou o policial federal Plácido Ladercio Soares, que estava saindo com uma de suas ex-mulheres. A discussão foi imediata. Testemunhas que estavam na Avenida Higienópolis, próximo aos bares Café Sete e Castelinho, no Centro de Londrina, disseram que Plácido lutava caratê e estava armado com uma pistola Magnum 357. O bate-boca evoluiu. Pedregoso encarou.
— Você é valente porque está armado — disse Pedregoso.
— Não seja por isso. Vamos brigar como homens — retrucou o policial, tirando a arma da cintura e colocando-a sobre um carro estacionado.
Os dois nem trocaram socos. Pedregoso aproveitou a distração do policial, correu e pegou a arma. Deu dois tiros. As balas perfuraram o queixo e foram se alojar na nuca. Plácido só não morreu por muita sorte. Foi parar na UTI do Hospital Evangélico de Londrina. Sobreviveu. Pedregoso fugiu levando a pistola, dois dias depois devolvida pelos seus parentes. Foi buscar abrigo na fronteira, em Ponta Porã, em Mato Grosso. Virou traficante herdando os negócios do pai, Paulo Bernardo da Rocha, o Paulo Camarão.
O pai cresceu no crime nos anos 1950 e 1960, contrabandeando café do Brasil para o Paraguai, naquela época o maior exportador de café do mundo sem nunca ter plantado um pé. O pai tinha uma fazenda na fronteira usada para escoar o café contrabandeado, muito valorizado no Brasil por causa do aperto na fiscalização do Instituto Brasileiro de Café (IBC). Virou uma espécie de ouro negro, porque os paraguaios compravam a saca por preços até 70% maiores do negociado no Brasil. Luiz Carlos ficou na fronteira, foragido, até descobrir que o negócio do futuro era o tráfico de drogas. Quando reapareceu no radar da PF, virou o Cabeça Branca, deixando o contrabando de café para assumir o tráfico de cocaína, herdando toda a logística do pai. Virou amigo e protegido do comerciante Jorge Rafaat Toumani, o “Rei da Fronteira”, morto em junho de 2016 no Centro de Pedro Juan Caballero, cidade paraguaia vizinha de Ponta Porã, a 323 km de Campo Grande.