Imprimir

Imprimir Artigo

15/01/16 às 21:26

DAS INTENÇÕES

Do monopólio das virtudes a desilusão dos objetivos não atingidos, tudo nasce da poderosa força das intenções. São esses desejos, que quando não realizados cegam de ódio os próprios cegos. A vontade determinada, o pensamento reservado, os propósitos, as intenções, essas podem encaminhar o homem à fantásticas presunções e a retumbantes fracassos. Mas dos fracassos esse é o pior de todos, pois através desse nada se vê além da própria decepção. E assim contamina-se o pensamento desses desiludidos intencionados com um senso de injustiça, uma desesperança incurável e um forte negligenciado desejo de vingança.

A todas as pessoas é comum, a certa idade, a moralização das coisas. Do momento que se acertam limites entre o que você imagina ser e o que o mundo tem para oferecer, vem a consciência das limitações de todo o sistema, e então as primeiras decepções. Da tomada de consciência quanto a imperfeição dos pais, da noção dos mitos e mesmo da maior decepção de todas, a consciência da própria mortalidade, muitas vezes nasce um indivíduo desiludido que, ou caminha para adotar a ilusão pronta de outros ou caminha para adotar a ilusão das próprias intenções. No segundo caso, a superestimação da própria relevância no mundo e uma sincera noção de originalidade das ideias é a base comum desses desiludidos intencionados. A parca idade e a pouca experiência contribuem para construção de concepções simplificadas da própria realidade e subestimação de consequências. Por essa razão é comum nessa idade de moralização, que não se tema ou se ignore a própria morte por exemplo, pois é ela uma das consequências não intencionadas e subestimadas. Nessa etapa da vida, onde as intenções prosperam, as ideias automaticamente viram ações, cujo resultados são sub ou superestimados a modo de sustentar elas próprias, as intenções. O entusiasmo vence o discernimento. Uma famosa frase de Oscar Wilde resume bem:

“Não sou jovem o suficiente para saber tudo”.
Essa nova moral sensibilizada e desprovida de experimentação prática, carregada por intenções sinceras, tende a desprezar os conhecimentos adquiridos, expostos em tradições ou na cultura, com a justificativa de serem esses limitantes das próprias intenções e objetivos.  Essa falta de apreço pelo que não nasceu das próprias concepções, reflete automaticamente em um sentimento de repulsa pelas maiores representações das conquistas intelectuais do passado, as instituições. Essas que são organizações sociais que refletem basicamente as experiências quantitativas e qualitativas de todas as gerações até aquele momento, representam para o intencionado uma jaula da qual deve se libertar. E juntamente com a ideia de jaula, caminha muitas vezes a imagem de um carcereiro, que é a personificação dessas limitações, seja através da imagem dos pais, dos patrões, das corporações, da igreja e por aí vai, todos esses possuidores das chaves que separam esses pobres intencionados da sua liberdade. Como lamentava Rousseau:

“O homem nasceu livre, e em todos os lugares ele está acorrentado”
Será? Por ser elas, as instituições, uma representação atual, testada ao longo do tempo diante das limitações da natureza, com suas regras físicas incorruptíveis, essas traduziram-se em um vasto arcabouço de leis, normas, noções, leis comuns e bom senso. Por tanto, corromper essas entidades é ignorar sua complexidade, ignorando juntamente a complexidade do mundo natural e pôr fim a complexidade das consequências dos atos dos indivíduos. E ao fazer isso o intencionado geralmente também não sente dificuldade em ignorar os erros históricos cometidos em nome das mesmas ideias que ele sustenta. E quando esses erros são óbvios demais até mesmo para ele ignorar, os intencionados costumam relacionar os erros à alguma impureza das intenções daqueles contemporâneos aos referidos fatos e não à falha lógica das próprias ideias. E é nesse cenário de simplificação da realidade natural, da rejeição das noções instituídas, da ignorância dos erros históricos, que o intencionado, convencido da superioridade moral das próprias intenções, costuma adotar posturas extremas, tanto reacionárias quanto revolucionárias. O reacionário e o rebelde, portanto, são indivíduos diametralmente opostos, porém ambos carregados de intenções presumidamente superiores, porém é o rebelde que acredita no potencial das alternativas não testadas. Por esse motivo, como veremos, esse sujeito subversivo aproximar-se-á sempre com mais confiança do ponto de ruptura para com a noção que é talvez, a mais virtuosa de todas: a da individualidade. Por outro lado, o reacionário também representa um risco a essa noção, mas esse o faz ao resistir as novas concepções de individualidade, mesmo quando fundamentadas em resultados. Mas enfim, porque a individualidade tornar-se-ia um alvo dos intencionados?
 
A Individualidade
Essa noção de existir como indivíduo é a mais importante em uma sociedade democrática, pois presume a existência de direitos individuais e esses preveem o direito a individualidade das próprias intenções, o que para o desiludido intencionado pode gerar muita frustração, visto que as intenções de indivíduos diversos, inevitavelmente divergem.  O fato determinante aqui é a que depreciação das instituições levam invariavelmente a depreciação desses direitos individuais adquiridos, pois essas organizações evoluíram de modo a limitar o poder que as intenções de alguns indivíduos tinham de dominar a intenção de outros. A evolução do conceito de sociedade e das instituições caminhou para um afinamento das intenções de todos os indivíduos entre si, e nesse aspecto o livre mercado seja talvez o melhor exemplo. É, portanto, um processo ainda em evolução, de ação não centralizada, durante extenso intervalo de tempo, e composto de infinitas pequenas intenções que se relacionam entre si, onde as instituições possuem o papel de mediadores e garantidores da individualidade. Mas o intencionado rejeita tal concepção. A ele cabe, portanto, a busca da adoção de mecanismos de coletivização das intenções que se alinham às suas concepções morais, seja pela manipulação das instituições, seja pela distorção da realidade. O mais importante de tudo a se reconhecer aqui é que para atingir essa socialização das intenções, porém, é inevitável a violação crescente de direitos individuais, ou seja, da própria individualidade. E por isso mesmo que os intencionados tendem a caminhar para concepções infladas de Estado, pois é essa a única entidade poderosa o suficiente para aplicar a vontade das intenções de maneira generalizada. 

“Qualquer tentativa de substituir a consciência pessoal por uma ‘consciência coletiva’ é uma violência sobre o indivíduo, e o primeiro passo para o totalitarismo”.

- Hermann Hesse
Não é difícil de imaginar porquê um Estado destruído ou sequestrado, com o objetivo de adotar esses processos de coletivização, gerará formas totalitárias de governo. São denominadores comuns nessas situações:
  1. O monopólio de virtudes e intenções;
  2. O desmantelamento das instituições;
  3. A destruição da individualidade através do uso da força.
Não podemos presumir, contudo, a perversidade da totalidade dos intencionados. A confiança na moralidade de quaisquer intenções leva inevitavelmente a algum tipo de alienação, o que por sua vez pode levar a desastres não intencionais, que não existiriam pela ação solitária do indivíduo. E a história é cheia de exemplos: Nações inteiras que foram levadas à guerra em nome de uma “honra nacional”, programas de distribuição de terras que levaram milhões a morte pela fome, conflitos em nome de alguma religião etc. Em todos esses casos de violência precedeu-se a supressão das individualidades, em todos esses casos presumia-se a superioridade das intenções e em todos os casos a maioria esmagadora dos envolvidos eram presumidamente bons. Mas o mais importante. Em todos os casos o uso do Estado se fez necessário.

“ (...) de todos os ideais, aquele de fazer a pessoas felizes é talvez o mais perigoso deles. Ele leva invariavelmente a uma tentativa de impor nossa concepção de altos valores sobre os outros, com o propósito de fazê-los ver o que para nós é muito importante para felicidade deles, com o objetivo, de salvar suas almas. Isso leva ao utopismo e ao romantismo. Todos nós alimentamos a certeza que todos deveriam ser felizes na linda e perfeita comunidade dos nossos sonhos. E, sem dúvidas, haveria um céu na Terra se todos amassem uns aos outros. Mas como eu disse antes, a tentativa de criar um céu na Terra invariavelmente cria o inferno. ”¹
 
Das Intenções Superiores
Chamamos de proselitismo, o que pode ser entendido como o empenho de converter as pessoas a uma ideia, causa ou intenção e esse pode ser religioso, ideológico, político, social e em um fenômeno mais recente, ambiental. E em uma era de informação e comunicação instantâneas, o proselitismo atingiu patamares inéditos, onde uma necessidade de fuga de uma situação de niilismo pessoal e um sentimento de culpa leva muitos a se esconderem atrás de ideologias. Para esses desiludidos intencionados as falhas do sistema se dão pelo fracasso das demais pessoas em serem tão sábias e bem-intencionadas quanto ele, pois não há razão natural (sem leis físicas) para sermos infelizes, o que ressalta para eles a necessidade de conversão as suas intenções. Como motivador basal está uma crença em que a colocação das pessoas certas nos lugares certos é o suficiente para resolver muito dos nossos problemas, o que torna de vital importância para essas pessoas a existência de políticas e indivíduos bem-intencionados para a correta conversão junto a uma causa e o perfeito funcionamento do sistema. A intenção, portanto, é fundamental.

Não é à toa então que o culto a imagem dos indivíduos é tão importante para esses intencionados. A imagem de grandeza dos líderes, por exemplo, é cenário comum nos monopólios de intenções, pois eles são a máxima representação desses objetivos. Essas personificações, dotadas de um poder inflado oriundo do aparato estatal, são possuidoras de uma imunidade de ações, que mesmo quando deploráveis não sofrem com a devida proporção comum de causa e efeito. Isso se explica porque como representantes máximos de uma causa, são permitidos a eles falhas de comportamento, desde que as razões e motivos que suspostamente defendam permaneçam intactos. Por essa razão ditadores venezuelanos se sucedem no poder e permanecem populares entre os desiludidos intencionados, apesar dos claros crimes contra os direitos humanos cometidos por eles e do fracasso das suas políticas econômicas. É por isso que guerrilheiros, muitos assassinos confessos, são admirados por tantos. É por isso que governos comprovadamente corruptos são ainda defendidos apesar da reunião crescente acusando sua culpabilidade. As supostas razões superiores desses se misturam a sua imagem pública, criando o mito da sua identidade como defensores das intenções finais, uma representação da visão de mundo de seus seguidores, mesmo que não perfeita, mas ainda assim algum nível de representação. Enquanto isso, na prática esses indivíduos manipulam as emoções dos cidadãos, muitas vezes para manter projetos de poder ou ainda que bem intencionadamente, satisfazer as suas visões pessoais de mundo, custando o que for mantê-las.
 
Uma Visão da Nossa Essência
Adão e Eva, de acordo com a mitologia cristã, foram expulsos do paraíso depois de comerem da fruta do conhecimento. Cientes do mal e do bem, a humanidade então fez caminho no tortuoso mundo novo.  Multiplicaram-se, estabeleceram leis e construíram lentamente a sociedade como a vemos hoje, mas a essência pecadora permaneceu em cada um de nós. É uma metáfora interessante, visto que hoje sabemos, cientificamente, que o ser humano ainda é em boa parte o animal irracional que habitava as savanas africanas a poucos milhões de anos. Nosso cérebro ainda tem muito de reptiliano, muito de animalesco. Nós nos orgulhamos com razão das conquistas de nossa racionalidade, mas não podemos esquecer jamais que na essência ainda somos criaturas instintivas, egoístas e perigosas. Para não ceder ao cinismo, reconhecemos que há coisas boas aí e que mesmo a racionalidade é terreno imperfeito. Vejamos o amor materno, nosso instinto de proteção para com nossa própria espécie e a curiosidade, todos são manifestações do nosso lado mais animal e menos racional. E todas essas manifestações e instintos juntamente com nossa racionalidade se traduzem no que somos e o que podemos fazer de bom ou ruim, nossa potencialidade por assim dizer. Foi nesse contexto que as instituições modernas evoluíram. A fim de preservar o máximo da individualidade, explorando os aspectos positivos do instinto humano e suprimindo ao máximo o que há de pior, estabelecemos essas leis, ordens e um forte senso moral a fim de podermos existir como sociedade, enquanto existimos também como indivíduos com potencialidade para produzir coisas boas e ruins.
E é especificamente nesse ponto que os desiludidos intencionados, com postura revolucionaria, divergem dos demais. Enquanto sujeitos mais conservadores (não confundir com reacionários), são mais cientes dessa natureza moral ambígua natural humana, os intencionados tendem a ver o homem em sua condição mais natural como um indivíduo mais nobre, mais puro, menos egoísta e violento do que o civilizado, esse último como já descrito acima, corrompido pela sua própria civilidade e pelas instituições. Isso leva a adoção de uma visão romantizada da natureza e do papel do homem nela, da idolatria da figura do bom selvagem (personificação novamente) e o ódio a tudo o que não for natural (como é o caso em relação aos transgênicos). Para esses indivíduos o caminho para um mundo mais “justo” e feliz, se dará por um retorno as condições primitivas naturalistas superiores. A cruel e inescapável verdade é, contudo, que o homem primitivo era pobre e miserável. O sistema ao qual ele estava inserido era muito pouco produtivo e muito mais seletivo do que comparado com o atual. E assim foi porque a desigualdade e a pobreza não são invenções humanas, mas sim condições limitantes da própria natureza, como é a morte. Foi a adoção das leis, a criação das primeiras instituições e a evolução da tecnologia em um ambiente de livre comércio que permitiram o homem inventar meios mais produtivos de acessar recursos e dessa forma se afastar cada vez mais da nefasta condição de subsistência natural.

Mas visto que como indivíduos somos intencionados, como não cairmos na alienação cínica de ignorar toda e qualquer intenção? Como fazer a medida de nossos desejos?
 
Uma Medida para as Intenções?
A ausência de objetivos claros e mensuráveis é um dos principais erros de ação dos desiludidos intencionados. Como se baseiam quase que exclusivamente em uma visão final de mundo, ou de justiça “social”, muitas vezes esses apresentam apenas um esboço geral de ações, e que não são baseadas em resultados. O economista Milton Friedman denuncia essa falta de objetividade de resultados:

“O erro está em julgar programas por suas intenções e não por seus resultados”
As políticas afirmativas por exemplo, categoria em que estão os programas de cotas raciais para acesso ao ensino superior, possuem a intenção de corrigir “injustiças históricas” ao aplicar critérios diferenciados de acesso. Bem-intencionados em algum nível, programas assim estão em funcionamento a mais de quarenta anos em alguns estados americanos e têm produzido, de acordo com sucessivos levantamentos, resultados insatisfatórios e até opostos aos intencionados. Como resposta, alguns intelectuais intencionados estão a defender a ideia de estender a aplicação dessas cotas obrigatórias também ao mercado de trabalho, em uma evidente supervalorização das intenções dessas políticas.

Segue o exemplo da profunda sede por intervencionismo estatal na economia, que só reforça a tese da fé dessas pessoas no poder do grande Estado e por tanto no poder das intenções. Da manipulação da taxa de juros ao estabelecimento de salários mínimos, a crença inabalável no poder da vontade mascara resultados reais quase nulos, mas enaltecem ganhos políticos significativos por parte dos defensores dessas medidas. Já na concepção da justiça se observa manifestações da mesma crença onde acredita-se por parte dos intencionados que o teste da verdade da justiça se dá por um processo de racionalidade articulada em vez de um produto de processos sistêmicos através do tempo, o que na prática significa uma propensão a relativizar decisões judiciais em favor de critérios individuais como, sim, a intenção. Em todos esses casos os desiludidos intencionados não costumam questionar as consequências secundárias dessas políticas de ações, acreditando que efeitos negativos não existem ou são insignificantes diante da possibilidade do objetivo final. Porém as estatísticas, ou seja, os resultados, mostram que ele não está livre do erro e, jogando nesse nível, de errar catastroficamente, enquanto mantém afastado o sentimento da angústia pessoal.  
“O mundo está cada vez pior e pior, mas muitas pessoas estão sentindo-se melhor e melhor com elas mesmo”. ²
 
Conclusões
Um indivíduo pode se dar ao luxo de viver a própria vida de acordo com suas intenções, mas que ao envolver a vida de terceiros elas perdem importância. Nesse patamar é preciso assegurar a conservação do conhecimento adquirido e a preservação de individualidade para que aja garantia da adequada evolução das ideias, todas com base na experimentação baseada em resultados. Ao Estado cabe a ação de mediador das relações e preservador das individualidades, através da garantia de instituições fortes. Ao indivíduo desiludido, prostrado entre a cruz e a espada, entre a ilusão das próprias intenções e a adoção da ilusão de outros, espera-se que abandone o desapontamento e aceite o mundo da forma que é, com suas regras físicas, seu próprio tempo e ritmo que por motivos que fogem ao controle torna a vida mais complexa do que podemos presumir. Que ele tome consciência da falibilidade da natureza e por tanto também a do homem e a sua própria. Que aprenda que não existe política ou programa social sem algum tipo de consequência negativa inesperada. Que ele valorize o conhecimento tácito, desconfie da verdade baseada em sentimentos e fuja do eterno jogo da construção de conjecturas sobre conjecturas, que só aumentam o cada vez mais frágil castelo de suas intenções e o fosso de desesperança que o cerca.
 
Referências:
  1. Karl Popper, The Open Society and Its Enemies, vol. 2:
  2. https://www.prageru.com/courses/left-and-right-differences/does-it-feel-good-or-does-it-do-good
Imprimir