Artigos / Telma Cenira Couto da Silva

30/09/19 às 18:50

As mulheres da minha vida

Thomires era o nome da minha avó paterna.  Descendente de franceses, tinha a pele muito alva e os olhos azuis claros, que lembravam o mar. O louro esbranquiçado do seu cabelo remetia-me aos das minhas bonecas. Adorava admirar o seu cabelo liso preso num coque quando a visitava. Abnegação a definia. Quando idosa levou um tombo, quebrou o quadril e nunca mais andou. Não reclamava de nada. Tinha sempre um sorriso nos lábios e muito carinho ao me receber. Um dia soube que a televisão iria chegar em Cuiabá. Ficou animadíssima com a novidade. Todavia, contaram-me que um dia antes da inauguração da televisão, ela amanheceu cega por causa da diabete. Não reclamou. Nem disso e nem das vicissitudes da vida. Deve ter ensinado ao meu pai a grande lição que ele me ensinou: “em qualquer situação, tem que tocar a vida para a frente”. Para mim, resiliência é a palavra que a define.

Minha avó materna chamava-se Francisca, mas era conhecida como Chiquita. Herdou dos seus ancestrais o sangue baiano apimentado. Era uma mulher forte e destemida, que enfrentava as dificuldades da vida de cabeça erguida. Recordo-me de um fato que ocorreu quando eu era adolescente. Ao ver-me triste e acabrunhada pela casa, ela disse-me assim: “levante a cabeça, menina, quem a magoou não merece ver a sua tristeza”. Sábia vovó Chiquita. Foram muitos os ensinamentos que aprendi com a sua simplicidade. Uma mulher forte e íntegra é a imagem que trago na memória.

Mamãe e a sua fé. Caseira, preferia estar no aconchego do lar. Às festas ia para acompanhar o meu pai, que era o oposto. Mamãe rezava muito, em casa.  Meu pai, que era extremamente brincalhão, costumava dizer: “Lenir deve rezar mais do que padre”. No final da tarde era a hora dela rezar as suas novenas. Nesse horário não gostava de ser interrompida. Ninguém podia falar com ela.  Quando a minha filha entrou em idade escolar a sua reza ficou ainda mais duradoura. Quando sabia que ela ia fazer provas no colégio, acordava de madrugada para rezar pelo seu sucesso. Papai não perdia a oportunidade e dizia: “Se depender da reza de Lenir, Tayane não precisa estudar”. Eu e meu pai divertíamos com essa história e, confesso, debochávamos um pouco da situação. Quando papai reclamava, ela dizia: “estou rezando por todos desta casa”. Mamãe partiu e com ela foram-se as suas rezas. Um dia, cansada e preocupada com tanta coisa para resolver, eu finalmente dei o meu braço a torcer e, falando internamente com ela, lhe disse: “Queria ter um pouco da sua fé. Gostaria que ainda estivesse por aqui; estou precisando muito de suas orações.” Queria sentir-me protegida e, não havia notado o quanto contar com a reza da minha mãe me deixava mais forte. Lutava sempre, por tudo que acreditava, e não desistia nunca. E ai de quem lhe dissesse que ela não iria conseguir o que almejava. O exemplo que a minha mãe me deixou é de fé e persistência. Herdei a persistência, mas não muito da sua fé.

Duas tias muito queridas, uma materna, e a outra, paterna, receberam o nome de Ana Maria. Ambas foram professoras, ficaram solteiras e eram extremamente dedicadas à família. A materna, Ana Maria do Couto era mais conhecida como May. Herdou de vovó Chiquita a força e o sangue guerreiro. Ousadia, coragem, pioneirismo e determinação eram a sua marca. Eu admirava o seu carisma e a considerava uma segunda mãe. Sempre a tive por perto em minhas recordações e coração, apesar dos muitos anos decorridos desde a sua partida.  Como ela, herdei de vovó Chiquita, o sangue apimentado. Já de tia May, o interesse pelos estudos, que me acompanharam durante toda a vida e me levaram ao magistério.

A paterna, Ana Maria da Silva, era conhecida como Nana. Simplicidade, doçura e generosidade a definiam. Ajudou a criar os sobrinhos que, em idade escolar, deixavam as fazendas onde moravam para estudar na capital. Foi a mãe postiça de muitos. Tornou-se uma mãe amorosa da filha que adotou e que para nós é uma prima querida. Tia Nana cuidou da mãe acamada por muitos anos. Antigamente não havia os acessórios modernos, como fraldas descartáveis, e as roupas eram lavadas à mão. Como a mãe, não reclamava de nada. Tinha para si que essa era a sua obrigação por nunca ter casado.  Com os anos aprendi a lhe dar muito valor.  Cuidei da minha mãe por quatro anos, mas, tive à disposição todo o aparato que a vida moderna me permitiu. Mesmo assim não foi fácil. Quando eu me sentia mais fraca tinha tia Nana como exemplo a me inspirar. Grande tia Nana, que, também, jamais será esquecida.

Na hora da maternidade chegou aos meus braços uma filha: a minha adorada Tayane. De mim ela herdou o gosto por livros e um incondicional amor aos familiares mais próximos. Ajudou-me a cuidar da minha mãe, sua avó, com muito carinho, e era só encantamento com o avô enquanto ele viveu. Tentei passar a ela tudo que aprendi com essas mulheres. Tayane é calma como vovó Thomires, íntegra como vovó Chiquita, determinada como a minha mãe e a tia May, generosa e amorosa como tia Nana. Acho que ficou faltando a “pimenta” do sangue de vovó Chiquita, mas talvez o excesso de doçura é o que a faz tão especial.

Mulheres tão diferentes, mulheres da minha vida.
 
PS:  Para Tayane, que é o melhor presente que eu ganhei de Deus.
Telma Cenira Couto da Silva

Telma Cenira Couto da Silva

Telma Cenira Couto da Silva, doutora em Astronomia (IAG – USP) e professora aposentada da UFMT.
 
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