Artigos / Eduardo Gomes

16/02/17 às 22:40

De CasaFlordeM

Aos 10 anos entrei numa sala de aula pela primeira vez. Até então não era alfabetizado. Explico: meu pai, Agenor Vieira de Andrade (UDN), era vereador por Governador Valadares representando o recém-criado distrito de Alpercata, onde respondia pelo Cartório do Registro Civil e Tabelionato. Por ranço politiqueiro e perseguição ao meu pai, o prefeito do PSD não construiu escola em Alpercata.

Quando alcancei a idade escolar, meu pai não me mandou para a escola em Valadares. Justificou que os filhos de seus amigos estavam privados do ensino e que não seria justo que eu fosse alfabetizado. Enquanto isso, minha irmã Selma e meu irmão Arnóbio eram mantidos em colégios fora do distrito: ela na sede do município e ele em Caratinga. Isso porque ambos já estudavam quando nos mudamos para Alpercata.

Enquanto amargava o analfabetismo, procurava palavras e frases para copiá-las, embora não soubesse seu significado. Em busca do saber, incontáveis vezes escrevia nos cadernos: “Casa Flor de Maio de Irmãos Pio”. Esse letreiro estava na fachada da imponente loja de tecidos e confecções do outro lado da rua, bem defronte à minha casa, na avenida que hoje leva o nome de meu pai.

Em 1960, meu pai e meu padrinho Juca de Salles conseguiram junto ao governo de Minas a construção do Grupo Escolar São José e contrataram minha tia paterna Carlota para alfabetizar a criançada do lugar. Assim, aprendi o alfabeto e as quatro operações, como se dizia à época. Naquele estabelecimento de ensino cursei o Primário, com direito a canudo e solenidade alusiva.

Nas trevas do analfabetismo sonhava em ler e, até, em escrever um livro. Meu pai lia “O Cruzeiro” e se debruçava sobre grossos livros normativos da atividade cartorial. Tive pouco contato com as leituras que eram dele porque em 11 de julho de 1961 um câncer traiçoeiro o levou aos 49 anos.

Pai sempre é ídolo e herói do filho. O meu foi mais que isso, pois ao impedir minha alfabetização isolada num universo de crianças vítimas da intolerância política, escreveu no meu íntimo o norte que leva à têmpera do verdadeiro cidadão, que desde então busco em meio às adversidades da vida e à dureza do mundo.

Em 2014 escrevi o livro sonhado na infância. Obra – permitam-me rotulá-la assim – simples, rabiscada com os pés no chão, sem pretensão literária. Assim surgiu o “Livro 44”, depois, desdobrando o desejo no meu analfabetismo, “Dois dedos de prosa em silêncio”, mais tarde “O ciclo de fogo – biografia não autorizada de Riva”, e agora, “Nortão BR-163: 46 anos depois”. Mas, não me sinto escritor, longe disso! É apenas a realização tardia de um sonho bom, sonhado enquanto rabiscava “CasaFlordeM”, como se estivesse grafando corretamente parte da identificação da loja ao lado de minha casa.
 
 
Eduardo Gomes

Eduardo Gomes

Eduardo Gomes é jornalista e escritor
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